Respostas ao questionário da Ghent University sobre a Renda Básica

1. Qual é o seu ponto de vista sobre o BI estar relacionado com a liberdade das pessoas?

Marcus Brancaglione
31 min readMay 18, 2018

(…) Fundamental. Diria até mesmo que, mais do que estar relacionada, a BI sequer faz sentido, ou pode ser chamada como tal, se seu objetivo não for garantir a aquisição incondicional dos meios materiais necessários para prover a libertação das pessoas das condições de privação, vulnerabilidade, submissão, servidão e exploração política-econômica, e a manutenção da liberdade assim conquistada.

2. Van Parijs (1995) usa a liberdade para se referir a: “A liberdade de fazer o que se pode querer fazer.” O que você acha de sua definição de liberdade?

Não conheço Van Parijs ou seus escritos o suficiente para advogar em favor nem de um nem de outro, mas me arrisco a dizer, com o pouco que li, que a definição dele de liberdade real, talvez, seja ligeiramente mais complexa. De qualquer forma, quanto a essa definição de liberdade especificamente em questão considerando-a na prática impossível. Ou mais precisamente, possível apenas para um número cada vez mais reduzido de pessoas, na razão diretamente proporcional de quanto maior for a liberdade dessas pessoas de fazerem o que bem quiserem, menor será a possibilidade dos demais de fazerem o que não querem, ou poderem fazer o que precisam. Pois, mesmo se os recursos materiais não fossem finitos, raros ou escassos, a tomada dos outros seres humanos como meros recursos deveria ser o limite dessa liberdade como querer- que por sinal tem outro nome popular: poder. Ou seja, é uma ideia de liberdade de outro mundo para um outro homem, o sujeito que habita os centros do mundo e toma os outros seres e formas de ser como objeto da sua vontade de poder, e não das pessoas das classes e povos periféricos as margens desse mundo- não raro literalmente do outro lado da cerca e do muro, com preocupações e entendimentos de liberdade bem mais modestos, como por exemplo, sobreviver e quem sabe conseguir fazê-lo com um mínimo de dignidade.

Existem coisas que são tão fundamentais e imprescritíveis que “querer” não é exatamente a palavra que se aplica ou explica essas condições, mas sim “necessitar” e “carecer”. Necessidades cuja satisfação ou carestia depende não só da posse e controle sobre o próprio corpo e suas ações e funções mais básicas, mas dos meios vitais e ambientais, os recursos naturais necessários para mantê-los, como água potável, alimento, um chão para construir um teto sobre sua cabeça ou cultivar- e claro um ar respirável, que porém sequer deveria ser uma preocupação, já que em condições naturais extremamente excepcionais não deveriam faltar a ninguém. Recursos que podiam ser adquiridos de forma natural e primitiva, simplesmente ocupando e tomando sua posse ou disputando-a via emprego da violência ou sua ameaça como forma de dissuasão dos concorrentes. Método que, por sinal, ainda se mantém como o corrente e usual na resolução de disputas por territórios e recursos entre os povos para além das fronteiras das suas sociedades e nações. Porém, havia outro método de sair dessa situação sem necessariamente entrar em disputas e conflitos principalmente quando era sabido que iria se perder. Fugir. Mover-se para outro lugar, tentar encontrar uma nova terra, um novo mundo onde poderiam se apropriar destes recursos, um território ainda não ocupado, ou ocupado por forças que não poderiam resistir ao emprego da sua violência. O ponto fundamental é que mesmo implicando riscos, entre submeter-se àquele que domina e se tornou dono do que ele também carece, entre o depender da sua boa ou má vontade para ter acesso ao necessário, seja pagando, servindo, pedindo autorização, ou dando seja lá o que quer que exija em troca, as pessoas nessas condições, supondo que também não tenham sido tomadas como escravos ou servos por eles, tinham uma opção que hoje não temos na medida que cada palmo de terra do planeta tem dono privado ou estatal: encontrar um novo mundo para se assentar e fundar sua sociedade. Aos descendentes, os que sobraram, dos expropriados, que nascem sem posses dos meios vitais das 3 restam 2 opções: submeter-se e trabalhar não mais para si, mas para quem quer que detenha e possa prover o que ele necessita, ou enfrentar o monopólio que não é só dos meios vitais e ambientais, mas por definição da violência, roubando e eventualmente matando despolitizadamente como um bandido ou politizadamente como um revolucionário armado.

Considerando que expropriar, aprisionar ou matar politizadamente ou não, legal ou ilegalmente, não é uma opção legítima nem que se legitima pelo sucesso do emprego da força de fato, nem enquanto revolta contra o monopólio da violência nem enquanto tomada democrática desse monopólio. E considerando que submeter-se a toda e qualquer ordem, demanda ou serviço em troca da subsistência, isto quando ou se ela existe, não é propriamente ser livre, livre do medo e terrorismo da carestia, da vulnerabilidade a exploração oportunista ou sistematizada da privação desses meios vitais e ambientais. Na absoluta falta de opções pacíficas na busca da libertação da carestia e garantia social da dignidade humana, inventa-se uma terceira: a renda básica de pessoa para pessoa.

A renda básica é portanto uma forma de garantir socialmente, ou seja, pacificamente o exercício do direito natural de autopreservação. Uma forma de garantir o acesso às condições básicas de vida em liberdade no mundo como ele é. É portanto sobre essa liberdade, natural e histórica que versa a renda básica. Uma liberdade que não é um querer ou poder, mas um precisar, um carecer de uma vida com um mínimo de dignidade e liberdade. É um processo de empoderamento para libertação da carestia e relações de poder, e não de constituição de forças e poderes para satisfação de desejos e manias, as quais podemos viver sem, e talvez viveríamos mais em paz sem. Uma liberdade fundamental que não é relativa, nem subjetiva, mas natural e universal. Uma condição de vida em liberdade impreterível. Liberdade que portanto tem percepção, concepção e nomes próprios, e se chama Dignidade.

3. Qual sua experiência em Renda Básica e justiça?

Sobre a renda básica temos 10 anos de um projeto social. Sobre justiça absolutamente nenhuma. Já li ensaio a respeito, mas nunca vi em lugar nenhum do mundo, e menos ainda no território que nasci e habito. Conheço o poder judiciário, suas leis, polícias, juízes e tribunais. Conheço Estados-Nações suas jurisdições e disputas jurisdicionais sobre territórios e pessoas, mas a idéia de justiça não, ao menos não como experiência como a renda básica. A ideia que tenho de justiça é ainda mais uma utopia, do que a de renda básica, pois da sua concretude conheço mais a distopia do que é a regra, do que seus ideais que se não são a exceção. Nisto a minha experiência e temores quanto a justiça e renda básica da tese às práticas são similares. Afinal, não há nada que impeça que os conceitos e até mesmos os modelos experimentais sejam apropriados e usados indevidamente tomando os termos e práticas para contrabandear e perpetuar outras ideias e práticas diametralmente oposto ao sentido dessas teses e ações, condenadas por sua vez, a ficar onde hoje são e estão (des)qualificadas: lugar nenhum.

4. O que você entende sob uma sociedade ‘justa’?

Sociedades civis derivam de contratos sociais, pactos de paz entre pessoas vivas e livres, para manter sua vida em liberdade. Parece óbvio, mas não é. Muitos dos contratos sociais que mantemos embora tenham sido sequer “assinados”, foram celebrados por gente que já morreu faz tempo, mas que não só regem a vida de quem de fato tem o direito de viver como daqueles que vão nascer (ver Edmund Burke e Thomas Paine). É portanto, basicamente um acordo para que ao invés de nos bater e matar por algo que todos precisamos, mas não temos como dividir nem renunciar, possamos partilhar e compartilhar essa coisa tomada assim como bem comum. Na verdade é muito mais provável que a sociedade seja formada da formalização de uma comunidade, a formalização da comunhão sobre um bem comum que já se compartilha em paz, do que um acordo de paz entre pessoas ou povos beligerantes, mas isso não vem ao caso. O importante aqui é que esse pacto social que implica tanto na concórdia sobre a renúncia a violência quanto a assunção da responsabilidade de respeito e garantia mútuas de posse, defesa e provisão desses bens comuns deve (ou deveria) ser livre, voluntário e explicito, firmado por pessoas na plenitude do exercício da sua capacidade de tomada de decisão. Pessoas que não necessariamente precisam possuir as mesmas forças, capacidades, poderes ou posses, mas que necessariamente precisam estar numa condição basilar de igualdade: a nenhuma delas pode faltar os meios necessários para pleitear e decidir os termos da sua adesão. Nenhuma das partes pode estar numa condição tal que seja obrigada a aceitar os termos das outras, seja porque elas negociam com armas na mesa, seja porque ele sabe, assim como os outros, que se ele não aceitar os termos vai definhar de fome. Ou seja, não importa se as condições que o impedem de tomar parte de uma sociedade onde ele tenha de fato participação política e econômica sejam causadas por suas privações provocadas por ele mesmo, pela natureza ou até mesmo pelos demais, o fato é que esse contrato social não é justo ou injusto, ele é nulo.

Poderia então dizer que justa seria então a sociedade que garantisse a igualdade de direitos e deveres tanto como garantia de igualdade de poderes e autoridades sobre esse bem comum enquanto deveres, quanto a garantia de liberdades fundamentais equitativas como usufruto desses bens e direitos de fato. E que considerando que esse bem comum não deve ser consumido e extinto e sim preservado, esse usufruto deveria portanto se dar sobre o seu rendimento e não sobre o capital. Mas a preservação de tais termos e condição não são necessários apenas para haver uma sociedade mais justa, mas antes disso para haver de fato uma relação que possa se chamar propriamente de social, e sua formalização de qualquer coisa parecida com uma sociedade e não um mero território de condicionamento e domesticação de homens sobre homens.

O problema, ou um dos vários, é que a igualdade é uma mera abstração lógica, ao contrário da liberdade que além de também ser um construto mental também corresponde a fenômenos elementares da vida, forças, volições e condições correspondentes a meios vitais e ambientais. E portanto a possibilidade de paz e justiça não derivam da ideia abstrata de igualdade absoluta, mas da preservação dessas propriedades e direitos naturais, e não de valores ou instituições imaginárias.

De modo que a justiça e paz derivam não da igualdade, mas da distribuição ampla e irrestrita de segurança e seguridade social, como garantia que toda e qualquer desigualdade não se constituirá como superioridade de forças e autoridades adquiridas justamente pela apropriação, controle e posse de bens comuns e logo privação ou concessão dos meios vitais mediante submissão às ordens ou execução de serviços. Ou em outras palavras, que todos possuirão ou posses e rendimentos suficientes para que ninguém dentro da sociedade esteja vulnerável a ser submetido contra sua vontade e dignidade a ninguém. A garantia que nenhuma riqueza será constituída como poder, ou mais precisamente que nenhum poder será constituído do empobrecimento e carestia do alheio.

Logo, considero uma sociedade justa aquela que se instaura sobre o pacto social de garantia de igualdade dessas liberdades fundamentais concretas como meios vitais e ambientais que permitem tanto a renúncia a violência como a participação de fato política e econômica na vida pública e social, tanto na forma de renda básica quanto democracia direta, formas complementares de garantia de liberdades fundamentais como participação e autoridade iguais sobre o bem comum; sem o subsidio da violência e como prevenção e proteção contra tais condições de vulnerabilidade que viabilizam o emprego de tais violências e violações: a privação dos recursos vitais. E consequente desigualdade de poder e relações- constituída e mantida não só de tais privações, mas jamais sem o seu controle, regulação e condicionamento.

5. A renda Básica ajuda a alcançar essa sociedade justa? Por quê?

A renda básica não é a única forma de se constituir sociedades justas ou especificamente a sociedade justa acima descrita. Porém, em sociedades capitalizadas e monetizadas, onde a propriedade tanto particular quanto a pública compreende a totalidade dos bens comuns, e logo acesso aos meios vitais, essa é a única forma de garantir o equilíbrio não só justo mais sustentável desse sistemas socioeconômicos. Dado que a parcela corresponde a partilha do usufruto do bem comum só é possível através da garantia de dividendos sociais correspondentes pelo menos ao minimamente necessário a subsistência com dignidade e renuncia a violência. E sem a possibilidade a essa garantia de subsistência e liberdade o pacto social e estado de paz perdem sua razão de ser para aqueles que estão cada vez mais a margem dele.

Há também outras formas de construir sociedades mas elas não são nem justas, nem propriamente sociais, e na verdade nem sequer humanas, ao menos não para quem está a margem delas, é objeto e não o sujeito dessa arquitetura. É possível, por exemplo, encarcerar as populações que diante das opções possíveis fazem as escolhas erradas, isto é, ao invés de trabalhar ou mesmo matar e pilhar legalmente para quem tem a licença de fazê-lo, trabalhar, matar e roubar delas. Mas isso fora as objeções humanitárias, além de ser monstruoso é estúpido (o que é também redundante), dado que o custo com tal “solução” além de ser maior, e sempre escalar na medida que a tendência de pessoas nascendo com um ainda mais delimitado de opções do que herdadas dos pais e sociedade só aumenta com esses presos, assim como os custos da sociedade.

Claro que poderíamos sair de um punitivismo e eugenismo menos brando e disfarçado, e matar e aplicar penas de mortes da forma o mais ampla possível. Porém mesmo que o custo do extermínio seja menor do que encarceramento, há um problema logístico grave: se matarmos todos os burros de carga quem vai puxar a carroça? Enquanto ela não andar sozinha, as máquinas do capitalismo e o nazifascismo embora continuem se amando, vão ter que adiar o tão sonhado casamento. Claro que é perfeitamente possível matar o índio e sequestrar o negro e ainda por cima lucrar com esse comercio de mão-de-obra. Mas esse lucro é feito não só as expensas da exploração dessas pessoas, mas externalizando os custos das suas consequências para a sociedade, custos que inevitavelmente terão que ser pagos, mas que vão sendo empurrados para o futuro, como dívidas e prejuízos que assumidos ou não, são de uma forma ou outra pagos pelas próximas gerações.

De modo que é perfeitamente possível manter sociedades injustas ou extremante injustas por longos períodos de tempo desde que os recursos disponíveis para manter a injustiça e repressão sejam abundantes. Porém eles inevitavelmente se extinguem pela própria natureza do consumo e exploração tanto dos recursos naturais quanto humanos, ou seja, pela mesma razão que as pessoas não tem para onde fugir, os impérios também não tem como se expandir, não há mais territórios e pessoas a serem simplesmente colonizadas, ao menos não na Terra. De modo que entre alterar o padrão de exploração da natureza e dos outros vivos incluso seus semelhantes, a opção mais sensata é esse homem ir colonizar Marte.

Assim sendo o atual pacto social para não colapsar político e economicamente pela própria tensão social que produz tem somente duas opções para ir prorrogando seu acerto de contas e derradeiro final: continuar pilhando e explorando outros povos e terras indefinidamente e nos períodos de vacas magras reintroduzindo a segregação e exploração brutal e tirânica dentro do seio das suas classes sociais da sua própria população, voltando a cagar onde come como um senhor feudal medieval ou a classe governante do mundo subdesenvolvido. Ou então equilibrar minimante suas relações de domínio e poder.

Assim sendo, a mesma renda básica que representa a chance de viver com mais dignidade para quem não possui sequer essa liberdade numa sociedade mais justa, é para quem não precisa de uma, muito obrigado, uma forma de salvar uma sociedade injusta transformando em algo menos monstruoso e insustentável, antes que ele novamente decaia em outra barbárie, com suas guerras comerciais, econômicas e claro se eventualmente as de fato, armadas. Duas formas de preservar seu sistema de exploração e administração de privilégios e domínios do homem sobre homem com riscos e custos distintos, e a justiça continua a ser apenas uma peça de propaganda.

Seja portanto, constituindo um novo pacto social e modelo de Estado-Nações ou indo a guerra uns contra os outro para preservar os velhos, duas coisas são certas: não vai haver justiça com renda básica, mas por outro lado, muita gente que se mataria e morreria, ou simplesmente morreriam pela estúpida razão de não ter como simplesmente viver. Não ter um porquê suficiente capaz de nos mover para impedir que isso ocorra. Sinceramente não importo quais seriam esses porquês, se eles são justos ou injustos ou se precisam ser ou não. Desde que saímos da inércia e coloquemos um ponto final nisso qualquer sociedade é um bom começo para a justiça.

6. Qual a sua opinião sobre Renda Básica relacionada ao mercado de trabalho?

A renda básica é condição fundamental para que o mercado de trabalho seja, de fato, um mercado de trabalho e não um tráfico de trabalhadores assalariados. Ou mais precisamente, para que possamos fazer a distinção de quais mercados se valem honesta e legitimamente do trabalho voluntário de pessoas que vende sua força produtiva, e quais utilizam ou mesmo promovem a criação e exploração de exércitos de mão-de-obra barata incapazes de se recusar a prestar os serviços que lhe são dispostos por falta de meios de subsistência ou de como pagar as contas e dívidas com o capital que os emprega.

7. O que uma Renda Básica pode significar para as pessoas atualmente trabalhando?

“Trabalhando” é um termo propositalmente genérico e vago, que engloba pessoas que tanto desfrutam de possibilidades de escolhas quanto as que estão submetidas a condições tão próximas a servidão, escravidão e reificação, tanto a primitiva das bestas quanto a automata das máquinas que outras preferiram roubar, matar ou mendigar do que se submeter à eles. Um termo tão genérico quanto “pessoas”. Já que por “pessoas” tomamos a ideia de todos nós que somos iguais, quando na prática a absoluta maioria de nós não nos consideramos iguais uns aos outros, ainda que não confesse, e diferencie a categoria de pessoas não só o gene… gene, mas por classe que deriva essencialmente do emprego e função social, ou seja trabalho.

Particularmente, entendo trabalho como sinônimo de trabalho livre por oposição a trabalho servil ou obrigado. De modo que, o que muitas pessoas chamam de trabalho eu chamaria de escravidão moderna ou assalariada. Na exata medida em que essa pessoa é compelida não a trabalhar para se sustentar, porque todos precisamos, mas a trabalhar para outra pessoa para poder sobreviver sem recorrer a violência, fazendo não só o que ela não quer fazer, mas obedecendo ordens e praticando ações que jamais faria se não tivesse como se sustentar sem ter que necessariamente comer da mão de outra pessoa.

Assim como, particularmente, entendo renda básica como prática e não teoria. De modo que esta reposta depende tanto do que se refere como trabalho assim como do que se apresenta como renda básica a quem está trabalhando em que, se a renda básica como proposta discursiva ou ato e atuação concretizada. Não só o significado varia da tese a prática, mas as posições e oposições também, bem como a forma como as pessoas passam a fazer questão de deixar mais claro exatamente o que essa outra renda básica significa para elas.

De modo que o seu significado da renda básica varia muito pouco perante as variantes das suas teses, mas entre a renda básica como proposta discursiva e prática como ato e atuação, isso mudo completamente a visão não só de renda básica mas de mundo e relações sociais, não só de quem está recebendo, mas de quem está trabalhando para que ela aconteça.

É por isso que renda básica não se prega, se dá. Quem precisa dela sabe porque precisa e porque concorda, tudo que precisa é ser livre para receber. Assim como quem não concorda, não precisa, duvida ou sabe exatamente porque os outros que precisam não devem receber uma, também o é. O que a renda básica significa faz referência a coisas tão basilares e evidentes, que não só não faz o menor sentido a pretensão de transmissão simbólica do seu significado sem o ato, como seu significado do próprio discurso e da própria renda básica perde todo o sentido sem os atos que constituí de fato. E é preciso ser muito egocêntrico ou ter uma audiência cativa para crer que argumentos podem produzir significados que a própria sensibilidade empática da pessoa ou sua falta não é capaz.

8. Você pode me dar um exemplo?

Posso dar 4 exemplos bem práticos de experiências vividas e bem vivas do que a renda básica significou para três pessoas distintas que tive a oportunidade de conhecer.

Para um político, ela significou a ameaça de seu capital e curral eleitoral, o roubo da sua peça de demagogia. A chegada do que deveria permanecer como eterna promessa.

Para o empresário, seu significado se resumiu numa pergunta simples: quem vai limpar minha latrina?

Para uma moradora de Quatinga Velho, ao menos uma vez, quando todo o dinheiro havia acabado foi a única refeição que ela teve em sua mesa.

Por fim para quem trabalha 40 horas de trabalho, mais 10 a 20 h de transporte público que não se carrega nem animais. Não há maior riqueza do que seu pouco tempo livre, e portanto quando você vai até ele para falar de renda básica, isto soa como uma maldita pregação de testemunha de jeová aos domingos, um maluco pregando sobre mais tempo livre, para uma pessoa que não tem tempo livre para sonhar com tempo livre na sua única desgraçada hora que ele teria algum tempo livre para ficar em paz. Mais chato e patético que isso, só mesmo tentar convencer um faminto que um banquete é algo bom.

9. Adversários de um BI dizem que a realidade econômica não é questionada o suficiente com um BI, o que você acha dessa crítica?

Se esses oponentes tivessem se lembrando de ser realistas quando da invenção do capitalismo, socialismo ou mais recentemente do derivativos durante a crise de 2008, certamente teríamos outras realidades e sobretudo um pouco mais de noção sobre ela. O problema não é o que os oponentes dizem, eles são oponentes e isso já diz tudo. O problema é engolir os pressupostos da sua oposição como se fossem qualquer coisa minimante próxima a uma crítica. Para haver crítica, há de haver honestidade intelectual ou inteligência. E ou uma ou outra coisa não estão presente quando se aborda a questão da experimentação econômica sobre o prisma de um realismo, que inexiste para um campo do conhecimento que é produto da indústria e artificialidade humana.

A administração da raridade ou rarificação dos recursos, o objeto da econômica embora tente se vender como se fosse uma ciência feita de leis tão universais quanto a gravitação newtoniana, não são. O princípio contábil que leva e explica uma população inteira a morte não é o mesmo tipo de princípio matemático que “leva” e explica porque uma maçã cai da árvore. E talvez por isso podemos calcular com razoável certeza onde vai dar quando chutamos uma pedra, mas não onde vai dar quando chutamos outra pessoa. De modo que guardo em geral, pelo parecer da economia política, mesmo a favorável a BI, o mesmo apreço que tenho pela medicina cirúrgica… do século XIX, quando operavam grávidas com os mesmos instrumentos que dissecavam cadáveres, e continuariam o fazendo até que se provasse o contrário. Ou em outras palavras um bom economista ou uma boa crítica econômica é aquele que reconhece que a economia como ciência apenas engatinha. E logo serve e reproduz como toda ciência principalmente antes de poder se chamar propriamente como tal preconceitos culturais e interesses que a sustentam tanto cultural quanto economicamente não só como base da sua visão de mundo, mas não raro como a mão que a alimenta.

A comparação com o saber médico, não é gratuita. Se estabelecem procederes não raro recorrendo a força de fato como realidade dada, sem nenhum outro teste ou experimentação que não a própria prática como experiência. Depois questiona-se e demanda-se a comprovação e validação de qualquer alternativa que não se enquadre nessas preconcepções. É portanto mais do que natural que a economia de renda básica seja colocada em dúvida e desqualifica por quem tem o papel, ou melhor, emprego de justamente não colocar em dúvida e sim validar sem questionamentos da precarização do trabalho ao sucateamento da seguridade social até os tóxicos ativos e derivativos financeiros que garantam a perpetuação do mão invisível que tão bem os alimenta como única realidade possível, não porque tenha sido exaustivamente estudada e testada e questionada como hipótese antes de ser provada como verdade absoluta, mas simplesmente porque foi imposta como critério de verdade para julgar com toda a força que a persuasão que só o poder de fato político-econômico pode fornecer como subsidio a um campo de saber e seus cães de guarda.

Eu por exemplo, considero que indústria militar, especialmente a nuclear é, não só economicamente muito mais irrealista como perigosamente destrutiva. No entanto, minha oposição é irrelevante. Porque não interessa o que eu penso ou quero sobre a indústria ou política armamentista, mas sim quem investe, tempo, dinheiro e trabalho (principalmente dos outros) para fabricá-las. E digo isto, porque, o mesmo vale para a BI. Exceto o que implica em obstrução ou sabotagem, não me interessa o que os opositores pensam ou intendam sobre a BI. Me preocupa sim, o que pensam as pessoas que querem investir tempo, dinheiro e trabalho- o delas e não os dos outros. Fora desses propósitos, contra ou a favor, as críticas não fazem crescer nem cair cabelos. É filosobol. E filosobol não vai trazer uma renda básica para ninguém que careça. No máximo consegue atrapalhar por omissão ou perda de tempo precioso quem quer fazer, já que não tem como obstruir projetos e realizações, ao menos não os que não dependem da sua autoridade, autorização, trabalho ou dinheiro.

10. O que BI pode significar no debate sobre o feminismo?

Uma ferramenta a ser apropriada como instrumento de emancipação e diminuição da vulnerabilidade perante as relações de poder. Considerando que a maioria das relação de poder sobretudo as de pátrio-poder se sustenta na relação de posse e controle das pessoas através da ameaça e privação primitiva dos meios vitais e ambientais. Sociedades onde todas as pessoas possuem os meios vitais, não se podem extrair relação de poder e posse do outro a objeto de posse, emprego, uso e consumo com chantagem e escambo pela provisão da subsistência alienada. Uma pessoa que possui sem precisar vender seu trabalho, bens ou o que quer que seja para obter o sustento, não tem o poder para fazer o que quiser, mas tem a liberdade poder se negar a fazer o que outro lhe impõe.

Naturalmente que essa renda básica não pode ser portanto uma concessão governamental e obrigação cidadã, mas sim uma responsabilidade mútua ou cidadã e obrigação governal, ou do contrário as relações de desigualdade de autoridade permanecem e o Estado continua sendo o que é, o corpo artificial que encarna o pátrio-poder a todos que estão historicamente desde sua gênese submetidos a ele, a começar pelas mulheres.

11. Por que o BI ajudaria a emancipar as mulheres?

Porque ela reduziria um dos instrumentos usados pelas pessoas que exploram outros seres humanos e os reduzem a objetos e mercadorias a serem usados e empregados como bem quiserem. A pobreza. Pobreza não só como carestia, mas como vulnerabilidade e insegurança sobre as possibilidades de subsistência independente da submissão especifica a outra pessoa ou grupo de pessoas com mais posses e poderes. Emancipação das relações de poder estabelecidas por ausência de recursos básicos para a sobrevivência. Uma condição que não afeta só as mulheres, mas afeta com maior incidência todos os grupos excluídos das oportunidades iguais de acumulação de capital.

12. Você poderia me dar um exemplo?

Uma mulher que é espancada por seu marido, mas que não o deixa porque manteve ela por toda a vida como sua escrava e empregada doméstica sob o terrorismo do “enquanto eu prover você vai fazer o que eu mandar”, poderia ter um leque mais amplo de opções do que enfiar uma faca no pescoço do canalha enquanto eles está dormindo. Fugir e procurar um emprego, provavelmente como empregada em troca do equivalente a casa e comida sem espancamento- correndo o risco de não conseguir encontrar. E tantas outras opções, todas que fogem da condição digna de alguém que não está submetida a uma condição por não ter uma condição material nem psicológica de segurança de como se sustentar se abandonar a anterior.

13. Opositores dizem que a Renda Básica confirmaria os estereótipos sobre os papéis atuais de gênero, qual é sua opinião sobre essa afirmação?

Com toda a sinceridade do mundo, refleti muito sobre essa questão mas não consigo imaginar como alguém conseguiria fazer isso com uma renda básica. Entendo que entre a tese da universalidade da renda básica clássica e sua aplicação de fato exista um infinita diferença. Mas a base da discriminação tácita inerente a esses modelos de renda básica estão em geral dirigidas a formação de públicos alvos não baseados em gênero, mas em agrupamentos populacionais, isto é, territórios ou nacionalidades que em última instancia remetem a questões de raça, origem e classes sociais na medida que as populações tendem a distribuir urbanisticamente suas moradias colocando a margem ou em guetos as classes mais baixas, mas não compreendo como o desenho de um projeto aplicado de uma renda básica poderia descriminar as pessoas baseadas em gênero. Há desenhos de projetos sociais de transferência de renda dirigidas a núcleos familiares onde é a mulher a responsável pelo recebimento do dinheiro, como o bolsa família brasileiro. Neste caso entendo, a crítica, que ao mesmo tempo que busca ou parece empoderar a mulher garantindo que ela tenha prevalência no controlo desse recebimento, ao mesmo tempo cria uma condição onde a mulher precisa estar dentro de um núcleo familiar para recebê-lo. Mas justamente por isso, por criar tais condições tácitas, entre outras que são explicitas inclusive não só como precondições de carestia, mas também como contrapartidas a serem cumpridas para poder receber o recurso, que programas como o bolsa família não são programas de renda básica, a menos que por renda básica condicional ou incondicional. O que tira toda a força e distinção libertária do conceito. De qualquer forma, como se vê eu não consigo encontrar como um modelo genuíno de renda básica, incondicional, poderia se efetuar qualquer tipo de descriminação por gênero.

14. Quando alguém poderia receber uma BI na sua opinião?

Considero esse o maior erro de todos, na abordagem dos teoricistas da BI. A questão não é quando ou quem poderia receber uma renda básica. A questão é onde, quanto e para quantas pessoas nós podemos pagar uma renda básica com o que temos ou estamos dispostos a usar. E nós não como sujeito indeterminado, mas o eu e mais tanto quanto estiverem dispostos a se juntar nessa empreitada. A abordagem ética e teorética da renda básica aplicada é outra. Como o médico ou bombeiro, o agente social da renda básica não se pergunta quem deve atender, ou se questiona se deve ou não fazê-lo. Ele faz, e o faz com o recurso que tem para fazer ao alcance da sua ação e recursos. Ele não espera nem transfere a responsabilidade, ele a assume.

Em geral, nos atribuímos autocraticamente a jurisdição para advogar, e a prerrogativa de definir quem, quanto, onde, como e quanto seria o valor equivalente a subsistência do outro, discriminando e segregando quem poderia ou deveria receber, mesmo quando não temos não explicitamos ou sequer temos consciência dessas condições (e condicionalidades) tácitas e implícitas. Porém, ao mesmo tempo que chamamos para nós essa prerrogativa nos omitimos, comoda e convenientemente de assumir toda responsabilidade no que se refere aos deveres necessários para tirar essas propostas de garantia de direitos do papel- isto quando não transferimos explicitamente na própria proposição as responsabilidades como obrigações para um outro sujeito indeterminado, pessoas física ou jurídica mais rica ou poderosa.

É de se supor que quem possua mais recursos, deva assumir a responsabilidade e não há pessoa jurídica com mais recursos do que o Estado. Porém, entre dever e fazer há um abismo de interesses e propósitos distintos, que voltando ao exemplo das profissões vocacionadas, se esses profissionais esperassem a boa vontade quem pode mais ou teria o dever de, pessoas morreriam sem atendimento e edificações queimariam até o chão, com todo mundo dentro, a espera dos outros que podem ou deveriam fazer mais. Ademais, pessoas e entidades estatais ou privadas não acumulam quantidades de recursos que detém distribuindo, mas justamente retendo.

Logo, a resposta de quem, quando, como, onde e quanto poderia-deveria receber é uma resposta que se torna extremamente simples quando se muda a abordagem da normatização da vida alheia, para a da solidarização com a vida do próximo. É uma questão muito simples de se resolver quando saímos da vontade de predeterminar o que deveria ser feito e passamos para a vontade de fazer o que podemos. Quem, como, quanto, quando, tudo isso deixa de ser preconcebido por variáveis arbitrárias e passa a ser regido por um único e simples princípio, que não é uma resposta, mas uma pergunta:

Quanto EU possuo de tempo livre e dinheiro que estou disposto a compartilhar com pessoas que estes recursos podem fazer a diferença e que estão dentro do meu alcance? Quanto desse capital estou disposto a compartilhar como renda? Onde ele pode ser significado como básico? E se divido, para quantos continuaria tendo literalmente a mesma mínima importância convertida em valor monetário, não para mim, mas para eles? Quem são eles? Isso não importa, não precisamos saber absolutamente nada sobre eles, exceto que elas existem. E isso é algo que interessa a elas nos contar, e não a nós saber, porque os recursos a serem divididos continuam sendo os mesmos.

Essas formulações e cálculos são produto desta outra predisposição. E não o inverso. É a metis produzindo a teckne, e não o inverso e perverso. De modo que nesta busca, nesta investigação empírica para realizar a renda básica como prática, o sujeito que é responsável pela arquitetura do projeto poderá vir a descobrir que há lugares e pessoas tão pobres e carentes que com dinheiro que gastamos as vezes em um dia, famílias vivem semanas. E que portanto ninguém, ou quase ninguém é tão pobre e impotente que seus parcos recursos não possam significar a concretização da liberdade de alguém que tenha ainda menos. Descobrirá que a abordagem de Amartya Sen de liberdade como capabillities, como “estar livre de” faz mais sentido do que poder, embora este jamais tenha advogado pela renda básica. Porque a carestia, a necessidade de estar livre de algumas privações é a liberdade real que sequer temos noção da sua importância e presença por não conseguir sequer imaginar como uma pessoa pode viver sem ela. E em certos sentido estamos certos. Não podem. Estão apenas tentando, apenas adiando uma morte prematura do que propriamente vivendo ou desfrutando a vida.

Logo, a resposta não é quem poderia receber, porque não existe por definição, mas quanto você está disposto a dar. Com base nisto, é possível calcular onde e para quantas pessoas esse recurso disponível poderia se constituir uma renda básica não importando se é significativa ou se enquadra nas predefinições de que possui recursos e tempo suficiente para julgar isso, mas se importando e ouvindo (e muito) se ela é importante para essas pessoas.

Não são poucos os lugares do mundo onde o custo de vida são ínfimos, e são ínfimos e não raro justamente porque as pessoas não herdam nem possuem propriedades, portanto nenhum rendimento próprio garantido. De modo que definir a garantia do mínimo vital através da reserva do possível é fácil. Difícil é querer assumir a responsabilidade de fazê-lo. Transferir renda é fácil, difícil é não querer transferir essa responsabilidade. Encontrar quem queira e precise receber não falta, ou até mesmo quem queira forçar o outro a pagar, raro é encontrar quem queira pagar. Principalmente sem discriminar quem irá receber ainda que tácita e inconfessavelmente por não pertencer a sua sociedade, territoriedade ou nacionalidade, por não se enquadrar na identidade e preconcepções de seu semelhante.

Não é uma questão de vontade política ou de definição do “público-alvo”. Há uma completa inversão da mentalidade do predefinir e ditar quais são os direitos e deveres ao outro, para o ouvir quais são as necessidades e assumir as responsabilidades de acordo com as possibilidades perante o semelhante — por mais diverso que ela seja. Uma prática que demanda não só toda uma nova teoria, mas todo um novo método de produção das teses dentro de outro paradigma ético e experimental das ciências humanas. Um paradigma onde o sujeito que projeta o saber não toma o outro como objeto reificado de estudo, emprego ou experimentação dos seus projetos e projeções, mas como o sujeito da produção tanto do seu próprio eu e mundo, quanto dessa pretensão do outro em conhecê-lo e saber. Uma outra mentalidade onde este saber não se predispõe a ditar e governar a vida dessas pessoas, mas de dispor a serviço da sua vontade livre e soberana — que mesmo que não existisse, ou não mais, deveria ser recriada, revitalizada e plenamente desenvolvida em todo NOSSO potencial humano.

15. Qual é a sua opinião sobre BI (como sendo dada individualmente a cada pessoa) relacionada à coesão social na sociedade?

A renda básica, como disse, é fundamental para a manutenção da paz social em sociedades que não tem mais como extrair seus ganhos da pilhagem de outras classes ou outros povos. Porém mais do que um outro estágio necessário a civilidade da humanidade. A distribuição de recursos básicos para que ninguém estupidamente morra, definhe ou seja obrigado a submeter a ninguém dentro do território sob jurisdição dessa sociedade, seja ele um criminoso encarcerado, seja um trabalhador desempregado, ou a criança, filha de qualquer um deles é mais do que um elemento de aumento da coesão social e logo redução da tensão, é um elemento humanizador. Viver em sociedades comunistas ou capitalistas onde quem não trabalha não come, ou trabalha mas não ganha o suficiente, comer é desumanizante. E efetuar esse compromisso que antes de ser social é humanitário, é fundamental na exata medida que a preservação do próprio sentido gregário e sentimento empático não são racionalizações, mas essência formadora do ethos da nossa condição humana como pessoas e espécie, não só inteligente mas consciente.

16. O que você acha do BI em relação à exclusão na sociedade?

Prevenção da exclusão. E meio de inclusão social da população na sociedade. Há um engano em pensar em toda a população como sociedade. A sociedade é formada pelos elementos que participam política e economicamente das tomadas de decisão. Ainda que alta sociedade tenha maior influência e subsidio das classes governamentais, e as classes sociais mais baixas estejam literalmente mais a margem, na periferia dos centros de poder politico-econômico. E isso se não por categorias e classes, mas por gradações dentro dessa arquitetura piramidal, a sociedade por definição não faz parte do governo, nem o povo, a população que está na base do sistema faz parte de um ou de outro. Seus direitos iguais existem no papel, mas na prática são outros. Em tese e cartas magnas são todos iguais, na prática ainda são a plebe, que quanto mais longe da alta sociedade, mais baixa, rude, ignorante é encarada e mantida de preferência longe dos olhos e a distância.

Direitos político-jurídicos são ficções de muito mal gosto a quem não desfruta dos meios socioeconômicos para efetivá-los. De fato, onde os direitos político-jurídicos não são efetivos como provisões de fato, como de garantia socioeconômicos, restam dele apenas as obrigações como imposições e bens e serviços como meras concessões quando não, como compensações de uma pilhagem mal disfarçada de serviço público e social.

Sociedades que falam em garantia de vida e liberdade, e liberdade como direitos humanos, são como cidades e nações que escrevem em suas constituições que todos devem ter acesso a água e luz elétrica. E não constroem sistemas de distribuição nem de um nem outro. Na verdade falam de provisão de luz sem sequer ter inventado ou pelo menos reproduzido a invenção da lâmpada em escala das suas pretensões ou supostas pretensões.

Renda básica é isso. É inclusão social, num pacto social onde a proteção e provisão de uma rede de seguridade social, onde a garantia de direitos fundamentais como escolher livremente seu ofício de acordo com sua vocação não vem depois de velho, doente ou acidentado, mas durante o momento em que essas escolhas podem e devem ser feitas. Uma das características fundamentais nasceu e desfruta da proteção de uma sociedade ou pertence a plebe predestinada a sustentá-la. Como você escolhe seu trabalho e profissão? De acordo com as oportunidades ou conforme as necessidades? A resposta, mesmo onde a educação seja gratuita define a categoria da sua cidadania, e o grau de certeza, o próprio grau de segurança social quanto a ela.

Logo, pode-se dizer não só a que renda básica inclui um povo aparte de uma sociedade, ela inclui toda uma sociedade como parte de um verdadeiro contrato social e de um povo, não no Direito de papel, mas no Direito de fato, enquanto realidade social.

17. Qual é a sua opinião sobre a ideia de que certas pessoas com um BI gastariam seu dinheiro de uma forma que não é socialmente aceita?

Considero absolutamente correta a suposição de tal possibilidade, e completamente descabida tal possibilidade como objeção a BI. As pessoas vão eventualmente gastar o dinheiro que recebem como estas ou aquelas pessoas não gostariam. E enquanto isso não constituir um crime- como por sinal poderia ser utilizado o dinheiro adquirido por qualquer meio- não é da conta delas o que outro faz ou vai fazer com seu dinheiro. O problema é que não pensamos na renda básica como rendimento de uma propriedade que pertence como parcela de um patrimônio que também pertence ao outro, mas como caridade, seja privada ou estatizada como assistência social. E não é. Até porque mesmo se fosse assistência social, e não é, ainda sim seria um direito. E não caridade.

O problema é as pessoas não pensam na renda básica como um direito da pessoa sobre o que é dela, mas ainda como um direito dela como membro da sociedade ou autoridade governamental sobre a pessoa. E não é. Até porque se fosse, uma vez instituída como tributo não seria restituição do que é devido, mas roubo subsidiado pelo Estado. E de fato, se a renda básica não fosse a parte do rendimento de todo patrimônio que corresponda a parcela de cada pessoa na participação sobre o bem comum, esteja ela distribuído como propriedade privada ou estatal, se esse tributo e renda redistribuída fosse além desses valores que constituem a subsistência digna, seriam um roubo. Da mesma que é o roubo, a invasão de uma casa de outra pessoa, independente do fato que contribuímos socialmente com que essa propriedade exista simplesmente por renunciarmos a violência e vivermos em sociedade.

Detentores de propriedades e capitais já fizeram coisas absolutamente monstruosas e criminosas com a quantidades de capital que eles detém e ninguém, em momento algum, aventou a possibilidade de se eliminar a propriedade de todos eles ou a própria propriedade privada instaurando um controle público e social das posses privadas, ninguém exceto os comunistas (autoritários) é claro. De modo que o que A faz com o que é seu, não implica no direito de B sobre o que é dela.

Toda a sociedade, mesmo aquelas que se assentam sobre estados mínimos de proteção patrimonial, implicam em distribuição de custos e benefícios. De modo que aqueles que não tem nenhuma posse pagam tributos também para proteger as propriedades de quem tem posses, manter e circular bens e veículos que não andam nem transportam seus bens; mas mesmo assim, querendo ou não, arcam com os custos e manutenção e proteção daquilo que não possuem, por vezes proteção onde eles como expropriados são os principais suspeitos. Assim sendo, tirando quem viva numa caverna, não há quem de alguma forma participe da relação de custo-beneficio da sociedade. O que varia é o custo e benefícios para cada pessoa na medida que, quanto mais inversamente proporcional é a contribuição dada em relação a capacidade e necessidade, mais injusta será a sociedade e maior a tensão e risco de ruptura do tecido social especialmente em momentos de crise sistêmica político-econômica.

De modo que podemos dizer que uma pessoa que não possui nenhum rendimento de propriedade e fundos particulares, nem das propriedades e fundos públicos, está bancando custos de muitos benefícios, subsídios e serviços que não recebe, ou dos que recebe nem sabe quanto lhe custa não apenas em valor monetário que varia conforme o mercado, mas em tempo de vida trabalhando. É um contrato social de leão, que não é à toa que só se manteve até hoje como o subsidio do monopólio “legitimo” da violência e sem ninguém poder assiná-lo. Porque enquanto se socializa os custos, se privatiza os lucros. Ou seja a “sociedade” novamente está fazendo as perguntas erradas em relação ao povo. A pergunta não é o que elas vão fazer com o dinheiro se receberem uma renda básica. É o que a sociedade vai fazer para se proteger da sua plebe se o monopólio da violência não for suficiente para conter quem não tem mais como sustentar, nas costas, um Estado inchado e falido? Porque quem não tem pão come brioche e quem não tem pão nem brioche come aristocracias. Pois é um erro pensar que essas pessoas que mais carecem de uma renda básica pertence a uma sociedade, eles fazem parte do povo, que por definição não compõe nem a classe governamental nem sociais. Não é portanto uma questão do que este ou aquele faz com o seus dividendos sociais, seja como renda advinda do seu patrimônio privado, do público que também é absoluta e exclusivamente seu como parcela, enquanto o uso dessa posse ou rendimento não coloca em risco e agride nem priva os demais, o direito de intervenção da sociedade é exatamente o mesmo de qualquer outra propriedade da pessoa, nenhum.

18. Poderia me dar um exemplo?

Não. São infinitas as formas e vontades que uma pessoa pode querer fazer uso dos meios que possui para determinar sua vida, e logo infinitas as formas e vontades dos demais ao invés de cuidar da sua, se dedicar a vigiar a alheia. Mas como base nesse princípio, é possível dizer que uma das formas de uso da renda básica que permitiria a intervenção dos demais, seria justamente se a pessoas sozinha ou em associações com tantas quantas utilizasse esse renda justamente para controlar e vigiar a vida e usufruto de posses e rendimentos alheia.

A renda básica antes de ser uma prática libertária é uma ideia e ideal libertário que, se destituído de seu espírito e princípios, não são mais libertária e nem uma renda básica. E se assim o sucedesse, antes mesmo dela vir a se difundir, não precisaríamos mais de uma renda básica, mas de inventar outra prática para dar corpo e lugar a esse ideal.

--

--

Marcus Brancaglione

X-Textos: Não recomendado para menores de idade e adultos com baixa tolerância a contrariedade, críticas e decepções de expectativas. Contém spoilers da vida.