Gelderloos: A Não Violência é tática e estrategicamente inferior

Como a Não-Violência protege o Estado (Parte 5)

Marcus Brancaglione
57 min readApr 10, 2017

As estratégias da não-violência não podem derrotar o Estado; elas tendem a refletir uma falta de compreensão da verdadeira natureza do mesmo. O poder do Estado autoperpetua-se — vencerá os movimentos de libertação com tudo aquilo que esteja a sua disposição, e se as tentativas de derrubar tal estrutura de poder sobrevivem às primeiras ondas repressivas, a elite converterá o conflito em um conflito militar, e já sabemos que as pessoas que empregam a não-violência não poderão nunca vencer um conflito militar. O pacifismo não pode defender-se a si mesmo contra esse intransigente extermínio. Tal como expliquei em um estudo sobre a revolução nas sociedades modernas:

Durante a Segunda Guerra Mundial os alemães não estavam familiarizados com a resistência passiva (quando esta aconteceu); mas hoje em dia, as forças armadas estão muito mais preparadas para fazer frente à não-violência, tanto técnica quanto psicologicamente. Os defensores da não-violência, tal como nos lembra um especialista militar britânico: “inclinam-se a omitir o fato de que seus maiores êxitos foram obtidos contra oponentes cujo código moral era fundamentalmente similar, e cuja crueldade, consequentemente, acabou por ser bastante comedida… O único rastro que pareceu deixar em Hitler, foi a de excitar seu impulso de pisotear aquilo que na sua mente figurava como uma depreciável debilidade…”(…)

Ativistas da não-violência, tentando parecer estratégicos, frequentemente evitam qualquer elaboração de estratégias reais com simples afirmações, como: “a violência é a carta mais forte do Estado. Temos que seguir o caminho da resistência mínima, e atingi-los onde são mais fracos”[1]. Já é hora de distinguir entre elaborar estratégias e elaborar slogans, e de ficar um pouco mais sofisticado.

Para começar temos que definir algumas coisas. (O uso que vou fazer dos termos a seguir não são universais, porém, se os usarmos de maneira consistente eles se tornarão mais do que adequadas para os nossos propósitos.) Uma estratégia não é um objetivo, nem um slogan, nem uma ação. A violência não é uma estratégia, e também não o é a não-violência.

Estes dois termos (violência e não-violência) são fronteiras que se situam ao redor de uma diversidade de táticas. Uma diversidade limitada de táticas constrangerá as opções disponíveis para gerar estratégias, quando na realidade as táticas devem fluir sempre a partir de estratégias, e estas, por sua vez, devem fluir a partir de um objetivo. Infelizmente, hoje em dia as pessoas frequentemente parecem fazer o contrário, ao promover táticas que ficam fora das respostas habituais ou ao pensar táticas dentro de uma estratégia, sem ter mais do que uma vaga consciência do objetivo.

O objetivo é o destino. É a condição que denota a vitória. É claro, existem objetivos imediatos e objetivos finais. Pode ser mais realista evitar uma aproximação linear e visualizar os objetivos finais como um horizonte, como o destino mais longe que podemos imaginar, o qual se transformará quando os passos que, antes distantes, se tornarem mais claros, novos objetivos emergirem, e um Estado utópico ou estático jamais é alcançado. Para os anarquistas, aqueles que desejam um mundo sem hierarquias coercitivas, o objetivo final de hoje parece ser a abolição de uma série entrelaçada de sistemas que incluem o Estado, o capitalismo, o patriarcado, a supremacia branca e as formas de civilização ecocidas. Esse objetivo final está muito longe — tão longe que muitos de nós evita pensar sobre isso, porque podemos descobrir que não acreditamos que seja possível. Nos concentrarmos nas realidades imediatas é vital, mas ignorar o destino implica que jamais consigamos alcançá-lo.

A estratégia é o caminho, o plano de jogo para alcançar o objetivo. É a sinfonia coordenada de movimentos que guia até o xeque-mate. Os revolucionários em potencial dos EUA, e provavelmente de qualquer outro lugar, são normalmente negligentes quando o assunto é estratégia. Eles têm uma ideia tosca do objetivo, e estão intensamente envolvidos em táticas, mas muitas vezes renunciam completamente à criação e implementação de estratégias que sejam viáveis. De um certo modo, os ativistas não-violentos têm, normalmente, uma certa vantagem sobre os ativistas revolucionários, já que muitas vezes têm estratégias bem desenvolvidas para a busca de objetivos de curto prazo. A troca tende a ser uma total anulação dos objetivos de médio e longo prazo, provavelmente porque os objetivos de curto prazo e as estratégias pacifistas os encaminham a becos sem saída que seriam extremamente desmoralizantes se fossem percebidos.

Finalmente, temos as táticas, que são as ações ou tipos de ações que produzem determinados resultados. Idealmente, esses resultados têm um efeito composto, construindo o momento ou concentrando força ao longo das linhas traçadas pela estratégia. Escrever cartas é uma tática. Lançar um tijolo contra uma janela é uma tática. É frustrante que toda a controvérsia entre “violência” e “não-violência” desenvolva-se, simplesmente, pela discussão de táticas, quando a maioria das pessoas nem sequer questionou-se se os nossos objetivos são compatíveis, e se nossas estratégias são complementares ou contraproducentes. Face ao genocídio, à extinção, à prisão e a um legado de milênios de dominação e degradação, será que traímos nossos aliados ou negamos a participação na luta por aspectos triviais como quebrar janelas ou usar armas? Isso ferve o sangue!

Voltando a nossa razoável e fundamentada análise do tema: não vale nada que objetivos, estratégias e táticas se relacionem em um plano comum, mas um mesmo elemento pode ser visto como um objetivo, uma estratégia ou uma tática, dependendo do escopo de observação. Há múltiplos níveis de intensidade, e a relação entre os elementos de uma cadeia particular de objetivos-estratégias-táticas está presente em cada um dos níveis. Um objetivo de curto prazo poderia ser uma tática de longo prazo. Imagine que no próximo ano queremos construir uma clínica gratuita: esse é o nosso objetivo. Decidimos por uma estratégia ilegal (baseada no pensamento de que podemos forçar os poderes locais a nos concederem uma certa autonomia, ou que podemos nos situar embaixo de seu radar e ocupar bolhas de autonomia já existentes), e as táticas que escolhemos poderiam incluir a ocupação de um prédio, a captação informal de recursos, e nos treinar para a assistência (de forma não profissional) médica. Agora imagine que, em nossas vidas, queremos derrubar o Estado. O nosso plano de ataque poderia ser a construção de um movimento popular militante que seja sustentado por instituições autônomas e que as pessoas se identificassem com ele e lutassem para se proteger da inevitável repressão governamental. Neste nível, construir clínicas gratuitas é apenas uma tática, uma de tantas ações que constroem poder pelas linhas traçadas por estratégias, e que pressupõe planejar o caminho para alcançar a meta de libertação do Estado.

Tendo já criticado a tendência pacifista de unificar a partir de uma base de táticas comuns, ao invés de unificar sobre objetivos mútuos, deixarei de lado os pacifistas liberais pró-sistema e assumirei uma tosca semelhança de objetivos entre os ativistas não-violentos e os revolucionários. Vamos fingir que todos nós desejamos a libertação completa. Isso evidencia uma diferenciação de estratégias e de táticas. Claramente, a soma total de táticas disponíveis para os ativistas não-violentos é inferior, pois apenas podem usar a metade das opções que se abrem para os ativistas revolucionários. Em termos de táticas, a não-violência não é mais do que uma severa limitação da totalidade de opções que temos. Para que a não-violência seja mais efetiva que o ativismo revolucionário, a diferença deve estar nas estratégias; numa combinação particular de táticas que alcancem uma potência incomparável, enquanto eliminam todas aquelas táticas que podem se definir como “violentas”.

Os quatro tipos mais importantes de estratégia pacifista são: o jogo moral, a abordagem de lobby, a criação de alternativas e a desobediência generalizada. As distinções são arbitrárias, e de certo modo, as estratégias pacifistas combinam elementos de dois ou mais desses tipos. Mostrarei que nenhuma dessas estratégias conferem uma vantagem aos ativistas não violentos; de fato, todas elas são fracas e míopes.

O jogo da moralidade procura criar a transformação trabalhando nas opiniões das pessoas. Como tal, essa estratégia perde completamente o objetivo. Dependendo da variação específica — educando ou ocupando uma posição de superioridade moral — as diferentes táticas revelam-se úteis, embora, como veremos, não dirigem-nos a lugar nenhum.

Uma encarnação dessa estratégia é educar as pessoas, disseminar informação e propaganda, mudar as opiniões e ganhar o apoio popular em uma campanha. Isso pode significar educar as pessoas sobre a pobreza e as influenciar para se oporem ao fechamento de um abrigo para moradores de rua, ou pode significar educar as pessoas sobre as opressões do governo e as influenciar para apoiarem a anarquia. ( É importante salientar o que se entende por “apoio” nesses dois exemplos: apoio verbal e mental. A educação pode influenciar as pessoas para que doem dinheiro ou participem de um protesto, mas raramente encorajam as pessoas a mudarem suas prioridades de vida ou para assumirem riscos substanciais). As táticas usadas por essa estratégia pedagógica poderiam incluir a organização de palestras e fóruns, a distribuição de panfletos e outros textos informativos, a utilização dos meios alternativos e corporativos de comunicação para centrar e difundir informações sobre o tema, e a realização de protestos e marchas para captar a atenção das pessoas e abrir espaços de discussão sobre o tema. A maioria de nós já está familiarizada com essas táticas, já que é uma estratégia comum para alcançar a transformação. Somos ensinados que a informação é a base da democracia, e sem uma análise do verdadeiro significado deste princípio, pensamos que isso significa que podemos criar a mudança fazendo circular ideias sustentadas por fatos. A estratégia pode ser um pouco efetiva na hora de alcançar vitórias fugazes e menores, mas ela leva para várias barreiras fatais que impedem avanços sérios na busca por objetivos de longo prazo.

A primeira barreira é um controle elitista de um sistema altamente desenvolvido de propaganda que pode diminuir qualquer outro sistema de propaganda concorrente que os ativistas não-violentos possam criar. O pacifismo não pode nem se proteger de ser cooptado e diluído — como os pacifistas esperam se expandir e recrutar novos membros? A não-violência concentra-se em mudar os corações e as mentes, mas subestima a indústria cultural e o controle de pensamento dos meios de comunicação.

A manipulação consciente e inteligente das opiniões e dos hábitos organizados das massas é um elemento importante de uma sociedade democrática. Aqueles que manipulam esse mecanismo oculto da sociedade formam um governo invisível, que é o verdadeiro poder dominante em nosso país [2].

O trecho acima, escrito em 1928, pertence a um importante livro de Edward Bernays: Propaganda. Bernays não foi nenhum teórico marginal da conspiração; de fato, foi muito mais uma parte desse governo invisível que ele descreve.

Os clientes de Bernays incluíam a General Motors; United Fruit; Thomas Edison; Henry Ford; os Ministérios da Saúde e do Comércio dos Estados Unidos; Samuel Goldwyn; Eleanor Roosevelt; a American Tobacco Company; e Procter & Gamble. Ele dirigiu programas de relações públicas para cada um dos presidentes dos Estados Unidos desde Calvin Coolidge, em 1925, até Dwight Eisenhower no final dos anos 50. [3]. Desde então, a indústria das relações públicas que Barneys ajudou a construir só cresceu.

Se contra a campanha de movimentos locais ou lutas mais amplas por revoluções, a máquina da propaganda pode se mobilizar para contrariar, desacreditar, faccionalizar, ou afogar qualquer ameaça ideológica. Consideramos a recente invasão do Iraque. Ela deveria ter sido um modelo para o sucesso dessa estratégia. As informações estavam lá: os fatos desmascarando as mentiras sobre as armas de destruição em massa e a conexão entre Sadam Hussein e a Al-Qaeda estavam disponíveis ao grande público meses antes do começo da invasão. As pessoas estavam lá: os protestos anteriores à invasão foram muitos, embora o envolvimento dos participantes nos protestos raramente foi além de falas e simbolismos, como já poderíamos esperar de uma estratégia pedagógica. A mídia alternativa estava lá: graças à internet as informações chegaram a um grande número de americanos. Ainda que a maior parte da opinião pública dos Estados Unidos (o que é aquilo que a estratégia pedagógica busca capturar) não se posicionou contra a guerra, até a mídia corporativa começou regularmente a liberar informações sobre a falsidade das razões para ir à guerra, e mais ainda, sobre os enormes custos da ocupação. E, na concordância plena com a sua natureza, a mídia corporativa não liberou essa informação até que certos grupos significativos da elite começaram, eles mesmos, a se opor à guerra — e não porque a guerra estava errada, ou porque tiveram sido educados e iluminados, mas porque perceberam que era contraproducente para o poder e para os interesses dos Estados Unidos [4]. Mesmos nessas circunstâncias ideais, os ativistas não-violentos não conseguiram superar a mídia corporativa usando uma estratégia educacional.

O que pode ser melhor descrito como um ambiente social chocante, a interminável repetição e o quase total controle das informações feitos pela mídia corporativa, é muito mais poderoso do que sólido, argumentos bem estudados pelos fatos. Espero que todos os pacifistas entendam que os meios de comunicação são, como poucos, agentes da autoridade, ao igual que é a polícia ou as forças militares.

Em contraposição, muitos ativistas concentram-se na mídia alternativa. Embora difundir e radicalizar a mídia alternativa seja uma importante tarefa, não pode ser a base de uma estratégia. É fácil concluir que enquanto a mídia alternativa pode ser uma ferramenta efetiva em certas circunstâncias, ela não pode ir frente e frente com a mídia corporativa, primeiramente porque existem de fato evidentes desigualdades de escala. Os meios alternativos são controlados por vários mercados coercitivos e fatores legais. Conseguir levar informação a milhões de pessoas é algo caro, e os patrocínios não existem para financiar a imprensa revolucionária em massa. O beco sem saída[5] consiste em que não haverá leitores fiéis para se inscrever e para subsidiar um verdadeiro meio de massa radical enquanto a população em geral for doutrinada para se afastar de novas fontes radicais, e sedada por uma cultura da complacência. Além das pressões do mercado existe o problema da fiscalização e intervenção governamental. As ondas aéreas são domínio do Estado, que pode, e de fato censura e mina as emissoras de rádio radicais que tentam encontrar financiamentos [6]. Os governos ao redor do mundo, (liderados é claro pelos Estados Unidos) tornaram um hábito a repressão de páginas radicais da web, ora aprisionando quem gestiona a página, acusando-o de fraude, ora embargando equipamentos e encerrando servidores sob a justificativa de estarem realizando uma investigação sobre terrorismo.[7]

A segunda barreira à maneira de educar as pessoas com fins revolucionários, é a reforçada desigualdade estrutural do acesso das pessoas à educação. A maioria das pessoas não têm a capacidade de analisar e sintetizar alguma informação que desafie mitologias inteiras nas quais estão suas identidades e visões de mundo estão baseadas. Isso, é uma verdade que trespassara as classes sociais. Pessoas que possuem famílias pobres são mais propensos a sofrerem uma “deseducação”: são mantidas em um ambiente mental que desencoraja o desenvolvimento de seus vocabulários e habilidades analíticas. A “sobre-educação” das pessoas de famílias ricas as convertem em macacos treinados; eles são intensamente treinados a usarem a análise somente para defender ou aprimorar o sistema existente, enquanto são incrédulos irremediáveis e ridículos em relação a ideais revolucionários ou sugestões que o atual sistema está podre até seu cerne.

Independentemente da classe econômica, a maioria da população dos Estados Unidos responderá à informação e à análise radical com silogismos, moralismos e polêmicas. Serão mais suscetíveis aos especialistas argumentando sabedorias convencionais com slogans familiares, do que a pessoas apresentando análises e fatos desafiadores. Por isso, os ativistas que assumem uma estratégia educativa tendem a emburrecer a mensagem de um jeito que também podem ganhar vantagens do poder dos clichês e dos lugares comuns. Os exemplos incluem ativistas anti-guerra que declaram que “a paz é patriota”, já que seria muito difícil explicar os problemas do patriotismo no atual terreno semiótico (não se preocupe em dinamitar o terreno) e estereótipos culturais tentando capturar as verdades “menos” radicais. [8]

Uma terceira barreira é a falsa convicção sobre o poder das ideias. A aproximação pedagógica parece assumir que a luta revolucionária é uma “competição” de ideias, que há algo poderoso numa ideia cujo tempo chegou. Na sua base há um jogo moral, e ignora o fato de que, especialmente nos Estado Unidos, uma grande quantidade de pessoas que estão do lado da autoridade sabem muito bem o que eles estão fazendo. Por causa da hipocrisia de nossos tempos, as pessoas que se beneficiam do patriarcado, da supremacia branca, do capitalismo ou do imperialismo (em geral toda a população do hemisfério norte) gostam de justificar sua cumplicidade com os sistemas de dominação e opressão com mentiras altruístas. Mas um interlocutor ou interlocutora esperto descobrirá que a maioria dessas pessoas, quando encurraladas, não entrarão em epifania — elas reagirão com uma básica defesa dos males que esses privilégios os dão. É típico, as pessoas brancas vão reivindicar crédito pelas maravilhas da civilização, e insistirão que sua ingenuidade as dá direito aos benefícios do legado da escravidão e do genocídio; pessoas ricas reivindicarão que possuem mais direito em possuir uma fábrica ou uma centena de hectares de fazenda do que uma pessoas pobre de ter comida ou abrigo; os homens brincarão de ser o sexo forte e de ter um direito historicamente garantido para estuprar; os cidadãos dos Estados Unidos defenderão com agressividade que o petróleo é seu por direito, as bananas, ou ao trabalho, de outras pessoas, ainda depois de não conseguirem ofuscar a natureza das relações econômicas globais. Esquecemos que para manter as estruturas de poder, um grande número de técnicos, sejam acadêmicos, assessores comerciais, ou planejadores governamentais, precisam ficar criando estratégias constantemente para continuar incrementando seu poder e efetividade. As ilusões democráticas só podem ocorrer mais profundamente, e, ao final, a pedagogia fará que apenas poucas pessoas privilegiadas realmente apóiem a revolução. De um certo modo, as pessoas privilegiadas já sabem o que eles estão fazendo e quais são os seus interesses. As contradições internas emergirão na medida em que a luta fica mais próxima de casa, desafiando os privilégios em que estão baseadas suas visões de mundo e experiências vitais, e ameaçando a possibilidade de uma revolução confortável e iluminada. As pessoas precisam mais do que uma educação para se comprometer com uma luta dolorosa e prolongada que destruirá as estruturas de poder que têm encapsulado suas identidades.

Uma pedagogia não fará, necessariamente, que as pessoas apóiem a revolução, e ainda se fizera, não construirá o poder. Ao contrário da máxima da era da informação, a informação não é poder. Lembremos que scientia est potentia (conhecimento é poder), é a bandeira daqueles que já estão com o leme do Estado. A informação em si mesma, é inerte, mas guia o uso efetivo do poder; ela tem o que os estrategistas militares chamariam de um “efeito multiplicador de força”. Se para começar tivéssemos um movimento social de força zero, podemos multiplicar essa força quantas vezes quisermos, e ainda assim continuaremos tendo um zero bem grande e gordo. Uma boa educação pode guiar os esforços de um movimento social forte, tal como guias de informação útil guiam as estratégias dos governos, mas a informação em si mesma não mudará nada. Fazer circular ociosamente informação subversiva no contexto atual serve apenas para dar ao governo oportunidades para afinar sua propaganda e suas estratégias. As pessoas que tentam educar seus caminhos para a revolução, estão jogando gasolina em um campo em chamas, e esperam que o tipo certo de combustível irá parar o fogo antes de que eles mesmos sejam queimados.

Por outro lado, a educação pode ser extremamente efetiva quando integrada com outras estratégias. De fato muitas formas de educação são necessárias para a construção de um movimento militante e para mudar os valores sociais hierárquicos que normalmente estão no caminho para um mundo livre e cooperativo. Movimentos militantes precisam conduzir muito trabalho pedagógico para explicar porque estão lutando energicamente pela revolução, e porque abandonaram as vias legais. Mas as táticas militantes abrem possibilidades para a educação que a não-violência nunca poderá tapar. Por causa desses princípios imperativos, os meios de comunicação comerciais não podem ignorar um atentado tão fácil, tal qual fazem com protestos pacíficos [9].

E ainda que a mídia vá difamar essas ações, quanto mais imagens de resistência enérgica as pessoas recebam através da mídia, mais interrompida estará a ilusão narcótica da paz social. As pessoas irão começar a perceber que o sistema é instável e que a mudança é uma realidade possível, e assim, superar o maior obstáculo criado pelos capitalistas: as democracias dirigidas pelos meios de comunicação. Os distúrbios e as insurreições são ainda mais exitosos quando criam rupturas nessa narrativa dominante da tranquilidade. É claro, é preciso muito mais que isso para educar as pessoas. Ao final, devemos destruir os meios de comunicação comerciais, e substituí-los por mídias inteiramente populares. As pessoas que usam uma diversidade de táticas podem ser muito mais efetivas nisso, usando meios inovadores para sabotar jornais comerciais e emissoras de radio e televisão; sequestrar os meios de comunicação corporativos, e lançar uma transmissão anticapitalista; defender os meios de comunicação populares e punir as agências responsáveis pela sua repressão; ou expropriar o dinheiro necessário para financiar e incrementar consideravelmente as capacidades de transmissão dos meios de comunicação populares[10].

Manter a superioridade moral, que é a variação mais notoriamente moralista desse tipo de estratégia, tem algumas fraquezas ligeiramente diferentes, mas avança para o mesmo beco sem saída. Em curto prazo, ocupar uma posição de superioridade moral pode ser efetivo, e fácil de fazer quando os teus oponentes são políticos supremacistas brancos, chauvinistas e capitalistas. Os ativistas podem utilizar as manifestações, as concentrações e as várias formas de denúncia e sacrifício próprio para evidenciar a imoralidade do governo, em particular ou em geral, e apresentarem-se como a alternativa correta. Com frequência, os ativistas anti-guerra utilizam essa abordagem.[11]

Como um tipo de estratégia para a transformação social, ocupar uma posição de superioridade moral é enfraquecido pelo problema crítico da obscuridade desses grupos, coisa que é difícil de superar pelas barreiras criadas pela mídia corporativa conforme discutimos anteriormente. E, nas democracias dirigidas pela mídia, aquelas que tornam grande parte da política numa concorrência por popularidade, as pessoas provavelmente não gostam de ver um grupo minúsculo e obscuro como ético ou como um modelo. Ainda assim, a abordagem que busca alcançar uma moral superior, contorna o desafio de educar uma população mal-educada ao apoiar-se sob valores morais pre-establecidos e reduz assim, a luta revolucionária em uma busca zelosa por alguns poucos princípios morais.

Um grupo que esteja concentrado em manter uma moral superior também atrai recrutas potenciais com uma coisa que a mídia corporativa não pode oferecer: uma clareza existencial e um sentido de pertencer a alguma coisa. Os pacifistas e os participantes das greves de fome contra a guerra, são com frequência, membros desses grupos. Ainda assim, a mídia corporativa não é a única instituição produtora de conformismo social. Igrejas, clubes privados, e tropas de escoteiros, todos também ocupam esses nichos, e, dada a ênfase que grupos moralmente mais elevados dão em render-se a seus valores e culturas, há pouco discurso crítico ou alguma avaliação das moralidades envolvidas; assim, possuir uma moralidade mais realista e justa confere pouca vantagem real. O que está em jogo é a exaltação de uma posição moral considerada superior, e essas instituições éticas dominantes são de longe mais fortes do que os grupos pacifistas em termos de acesso a recursos — em outras palavras, eles são superiores e mais visíveis para a sociedade, ganhando assim facilmente a competição por novos “recrutas”. Por causa da atomização e alienação da vida moderna, existem muitos buracos deixados vazios por essas instituições morais, e muitos suburbanos e suburbanas solitários ainda estão ávidos por um sentimento de pertença, mas o pacifistas radicais nunca irão conseguir ganhar mais do que uma minoria dessas pessoas.

Aqueles que os pacifistas conseguem convencer, estarão mais empoderados do que os membros de um movimento que simplesmente busca educar as pessoas. As pessoas percorrerão grandes distâncias para lutar por uma causa que acreditam, para defender um lider ou um ideal. Mas um movimento baseado na moral, possui mais potencial para se empoderar e se converter em algo perigoso, do que um movimento baseado na educação (isto é, se abandonar eventualmente o pacifismo). Um movimento desse tipo, desenvolverá um autoritarismo e uma ortodoxia de massa, e será particularmente propenso ao faccionalismo. Também será facilmente manipulável. Não há, talvez, melhor exemplo do que o Cristianismo, que evoluiu de um movimento de oposição para um potente arma do Império Romano, de um culto pacífico para a mais patologicamente violenta e autoritaria religião que a humanidade jamais conheceu.

Ambas variantes estratégicas que se movimentam no jogo da moral, têm como propósito induzir a maioria da sociedade a participar ou apoiar o movimento. (Podemos deixar de lado a cômica pretensão de iluminar ou envergonhar as autoridades para apoiarem a revolução). Ambas variantes enfrentam probabilidades finais na procura por essa maioria, por causa dos controles estruturais efetivos sobre a cultura nas sociedades modernas. Na improvável chance de que essas probabilidades sejam superadas, nenhuma dessas variantes seria funcionalmente capaz de ganhar mais do que uma maioria. Mesmo se a educação se converta em uma ferramenta mais efetiva com pessoas mais privilegiadas, não funcionará contra a elite e as classes mais fortes, as quais recebem fortes incentivos e estão culturalmente “blindandas” pelo sistema; e ao ocupar uma posição de superioridade moral implica necessariamente a existência de um “Outro” inferior para se opor.

Da melhor maneira possível, as estratégias desse tipo irão levar a uma opositora mas passiva maioria, a qual a história mostrou ser fácil para uma minoria armada controlar (o colonialismo, por exemplo). Tal maioria poderia sempre mudar para outro tipo de estratégia que implique lutar e ganhar. Contudo, sem contar com nenhuma experiência ou mesmo com qualquer familiaridade com uma resistência real — a transição seria muito mais difícil. Enquanto isso, o governo teria recursos para explorar os defeitos enraizados no jogo moral, e um movimento revolucionário ostentoso se veria obrigado a uma batalha temivelmente incompatível; tentando ganhar os corações e mentes sem destruir a estrutura que envenenanaram os mesmos corações e mentes.

Educar e construir um ethos, um sistema de valores libertador, é necessário para erradicar completamente as relações sociais hierárquicas, mas existem instituições concretas como as leis, as escolas públicas, os campos de treinamento militar e empresas de relações públicas, que são estruturalmente imunes a “mudanças do coração”, e que atuam diretamente na sociedade para doutrinar as pessoas nas morais que mantém as relações sociais hierárquicas e o consumo e a produção capitalista. A negação das vias não-pacifistas para o fortalecimento do movimento e para debilitar ou sabotar essas estruturas nos coloca num barco que vai afundar, com um balde pequeno para tirar a água que entra por um buraco de 5 metros, pretendendo assim que rapidamente estaremos o suficientemente na superfícia para poder navegar até o nosso objetivo. Isso parece que vai chover tortas do céu e não deveria ser qualificado enquanto “uma estratégia”. Em um campanha de curta duração para lutar contra a abertura de uma nova mina de carvão ou de uma incineradora de lixo na vizinhança, é possivel levar adiante uma estratégia que assuma as restrições pacifistas (especialmente se a campanha educativa inclui informações de como a mina pode afetar a classe privilegiada da área). Mas na busca por mudanças duradouras, as estratégias desse tipo normalmente não conseguem chegar com sucesso aos objetivos que elas inevitavelmente criam.

Revolucionários em potencial exemplificam a ineficácia da não-violência ao construir poder através desse jogo moral que recém descrevi, e também quando assumem a abordagem de lobby. Lobbies foram construídos no processo político realizado por instituições que já possuiam um poder significativo (por exemplo, as corporações). Ativistas podem construir seu poder ao promover protestos e demonstrando a existência de um eleitorado (bancados pelos lobbistas), mas esse método de canalizar o poder de lobbies é muito mais fraco, centavo por centavo, do que o frio e difícil dinheiro das corporações. Além disso, os lobbies “revolucionários” são impotentes comparados a lobbies opositores ao status quo. Funcionar como um lobby também leva a um movimento hierárquico e desempoderado. A grande maioria deles são, simplesmente, ovelhas que assinam petições, levantam fundos, ou seguram cartaz em protestos, enquanto uma minoria educada e bem vestida solicita audências com os políticos e outras elites que reúnem nas suas mãos todo o poder político real. Os lobbistas as vezes identificam-se mais com as autoridades do que com seus companheiros; com o poder judicial por exemplo, com o qual estão apaixionados, e é assim que se mantém a traição. Se os políticos caem numa falha de tipo ético, os lobbistas não se comprometem, eles simplesmente irão negar sua relação com tal lobbista em uma audiência para evitar problemas, deixando-o fora de sua organização.

Os ativistas não-violentos empregam a estratégia do lobby tentando dispor de uma realpolitik[12] passiva, cuja meta seria exercer influência. Mas a única forma de exercer influência contra o Estado e almejar interesses diametralmente opostos aos do Estado, ameaçaria a própria existência do Estado. Somente esta ameaça pode fazer com que o Estado reconsidere esses outros interesses, porque o interesse principal do Estado é a sua auto-perpetuação. Em sua interpretação histórica da Revolução Mexicana e da redistribuição das terras, John Tutino assinala: “Apenas os rebeldes mais persistentes e muitas vezes violentos, como os Zapatistas, receberam terras dos novos líderes de México, o recado era claro: Só aqueles que ameaçaram o regime tiveram terras; assim, aqueles que solicitam a terra devem ameaçar ao regime[13]. Isto se deu na relação com um governo supostamente aliado dos revolucionários mexicanos não-urbanos. O que os pacifistas pensam que podem conseguir de um governo que desde sua constituição é manifestamente comprometido com os empreendimentos oligárquicos? Franz Fanon expressou o mesmo sentimento de maneira similar em relação à Argélia:

«Quando em 1956….A Frente de Libertação Nacional, em um famoso panfleto, afirmou que o colonialismo só perde seu domínio quando sente uma faca em seu pescoço, nenhum argelino considerou esta afirmação violenta demais. O panfleto apenas expressava o que qualquer argelino sentia em seu coração, que o colonialismo não é uma máquina pensante, tampouco um corpo com faculdades racionais. Ele é violência no seu estado natural e apenas ser rende quando se confronta com uma violência ainda maior.[14]»

As lições aprendidas na Argélia e na revolução Mexicana podem ser aplicadas ao longo da história. A luta contra a autoridade será violenta porque a autoridade por si só é violenta e a repressão inevitável é uma escalada dessa violência. Mesmo o “bom governo” não vai redistribuir o poder com os que estão abaixo dele a menos que entenda que todo seu poder está ameaçado. Praticar o lobby buscando mudanças sociais significa uma perda dos recursos escassos que possuímos nos movimentos radicais. Imagine se todos os milhões de dólares e as centenas de milhares de horas de trabalho voluntário, dos progressistas e também dos radicais, limitados ao lobby contra determinada legislação ou, para evitar a reeleição de algum político, ao invés disso, tivessem sido dedicadas para fundar centros sociais engajados, clínicas livres, grupos de suporte à detentos, escolas livres e centros comunitários de resolução de conflitos?! Deveríamos, de fato, buscar fundar um movimento revolucionário sério. Mas, ao contrário, vemos grande quantidade de esforço desperdiçada.

Além disto, os ativistas que assumem o lobby como ação, não percebem que levar demandas às autoridades é uma estratégia ruim. Os ativistas não-violentos colocam toda sua energia em obrigar as autoridades a ouvirem suas demandas, quando poderiam usar essa mesma energia para construir poder, para criar bases para fazer a guerra. Se alcançassem êxito, o que teriam alcançado? Como muito o governo sussurraria uma breve desculpa, perdendo um pouco de sua boa imagem, e confrontaria a demanda através de um papel (ainda que eles apenas se dediquem a fazer malabarismo com as coisas a sua volta com a intenção de negar a existência dos problemas) após isso, os ativistas terão perdido o momento e a iniciativa, estarão na defensiva, mudando de direção e reajustando sua campanha para enfatizar que trata-se se uma reforma fraudulenta. Entre membros de sua organização, os que se desencantam pulam fora, e o público em geral perceberá a organização como uma entidade impotente e incapaz de alcançar sua meta. (Não nos surpreende que tantas organizações ativistas que possuem o lobby como orientação, afirmem ter vitória até mesmo frente à mais vazia das metas!).

Considere por exemplo, o Vigia da Escola Das Américas (SOAW). Durante mais de doze anos, a organização utilizou de manifestações passivas anuais, documentários e campanhas de educação com o objetivo de construir um poder como lobby capaz de convencer os políticos a apoiar um programa para o encerramento da Escola das Américas (SOA), uma organização militar que treina milhares de oficiais e soldados latino-americanos que tomaram parte na maioria dos piores abusos e atrocidades cometidas contra os direitos humanos que ocorreram em seus respectivos países. Em 2001, a SOAW quase obteve apoio suficiente no congresso para aprovar um programa para isolar a SOA. Antevendo a ameaça, o Pentágono, introduziu uma singela alternativa no programa que “fechou” a Escola das Américas, ao mesmo tempo em que reabria a mesma organização com outro nome. Nos anos seguintes, o SOAW não conseguiu o apoio de uma grande quantidade de políticos que declararam que queriam esperar e comprovar se a escola “nova” apresentava alguma melhoria. Ainda assim, se o SOAW tivesse tido sucesso na hora de fechar a escola, os militares podiam simplesmente estender suas operações de treino da tortura em outras bases militares e programas disseminados por todo o país, ou transferir a maior parte do trabalho para assessores militares no estrangeiro. Se isso ocorrera, a SOAW estaria sem nenhuma estratégia viável e sem ter produzido efeito nenhum no militarismo dos Estados Unidos [15]. Alguma vez o governo dos Estado Unidos fez uma lei que fora contra os seus intereses ou tem deixado de fazer aquilo que exatamente queria fazer?

Pelo contrário, se os radicais mudam sua posição para combater diretamente o militarismo de Estados Unidos, e se puderam se constituir como uma ameaça real, mas sem nunca se aproximar de uma mesa negociadora, os temerosos oficiais do governo começariam desenhar compromissos e legislar reformas em um esforço para prevenir a revolução. A Descolonização, a legislação sobre os direitos civis e qualquer outra reforma que seja importante, tem sido ganha sempre deste modo. Rejeitando ser mitigados por este tipo de pratica como os lobbys, os revolucionarios sustentam a mais dura das reclamações que tem que ser abordadas. Ainda quando perdem, os movimentos militares tendem a provocar reformas. As Brigatte Rosse na Itália, foram, em última instância, falhas, mas geraram uma grande ameaça que provocou uma série de golpes de efeito de grande alcance, repercutindo no estado social do bem-estar, assim como medidas culturalmente progressistas (por exemplo, expanssão da educação pública e o orçamento social, descentralizando algumas funções do governo, a integração do Partido Comunista no governo, e legalizando o controle da natalidade e do aborto), tudo num esforço por drenar o apoio das bases militares através do reformismo. [16]

O planejamento de uma construção alternativa implica um importante componente de estratégia revolucionária, mas subestima a existência de uma complementariedade entre os outros componentes necessários para o sucesso. A ideia é que ao criar instituições alternativas podemos nos prover de uma sociedade autônoma e demostra assim que o capitalismo e o estado não são desejáveis.[17] Na atualidade enquanto são construidas estas alternativas, é de vital importância criar um movimento revolucionário e deixar o trabalho de base para as sociedades libertadas que virão depois da revolução; é completamente absurdo pensar que o governo permanecerá impávido enquanto nós construimos experimentos sociais que implicam sua desaparição.

Os eventos na Argentina decorrentes do colapso econômico de 2001 (por exemplo as fábricas tomadas) têm sido grandes inspirações para pessoas anti-autoritárias. Os anarquistas não-violentos (muitos deles acadêmicos) que são a favor da estratégia pacífica de criar instituições alternativas usam uma interpretação diluída dos eventos na Argentina para injetar algo de vida na suas estratégias, que de outro modo se veriam muito frouxas. Mas as fábricas ocupadas na Argentina sobreviveram por uma de duas razões: ou serem legalmente reconhecidas e inseridas novamente na economia capitalista simplesmente em forma de uma empresa participativa; ou montando barricadas naquele momento — para lutar contra a intenção de despejo policial, combatendo com paus e estilingues, assim como construindo alianças com assembléias militantes vizinhas, para que as autoridades temessem uma extenção do conflito no caso de aumentar as suas táticas repressivas. O movimento operário está na defensiva. Suas prácticas e sua teoria estão em conflito, porque em geral não estão se conduzindo rumo ao objetivo de substituir o capitalismo ao espalhar alternativas de controle por parte dos trabalhadores. A principal fraqueza do movimento radical de trabalhadores tem sido a incapacidade de de expandir o movimento através da expropriação de fábricas nas quais os chefes ainda estão no cargo.[18] Essa rota os colocaria num conflito com o Estado maior do que estão atualmente preparados para assumir. Certamente eles estão dandoum exemplo importante e inspirador, mas enquanto eles só forem capazes de tomar fábricas que já foram abandonadas, não criaram um modelo para realmente substituir o capitalismo.

Na Convergência Anarquista Norte-americana [19] de 2004, na palestra de abertura, Howard Ehrlich aconselhou aos anarquistas de hoje a agirem como se penssassem que a revolução já estivesse aqui, e a construir o mundo que gostaríamos para ver. Deixando de lado a falta de sentido deste conselho para pessoas que estão na prisão, indígenas que enfrentaram o genocídio, iraquianos que tentam sobreviver sob a ocupação, africanos que morrem de diarreia simplesmente porque têm sido privados de água limpa, e a grande maioria das pessoas do mundo, esta declaração faz eu me preguntar como Elhrich pode esquecer a longa história de repressão governamental aos espaços autônomos dos movimentos revolucionários.

Em Harrisonburg, Virginia, construimos um centro para a comunidade anarquista, aberto para os moradores de rua poderem dormir no inverno, e também distribuiamos comida e roupas fora desse espaço. No prazo de seis meses os policiais fecharam o espaço, usando uma criativa coleção de leis sobre horários e regulamentos da construção.[20] Nos anos 60, a polícia mostrou um ativo interesse em sabotar o programa do Black Panther que oferecia café da manhã grátis para as crianças.

Como exatamente se supõe que vamos construir instituições alternativas se somos impotentes na hora de protegê-las da repressão? Como vamos encontar terras onde construir estas estruturas alternativas quando tudo nesta sociedade tem um proprietário? E como podemos nos esquecer de que o capitalismo não é eterno, que alguma vez tudo foi “alternativo” e que seu paradigma desenvolveu-se e expandiu-se através precisamente da sua habilidade para conquistar e consumir essas alternativas?

Ehrlich tem razão quando diz que precisamos construir instituições alternativas hoje, mas está errado quando tira a ênfase do importante trabalho de destruir as instituições existentes e defender a nós mesmos e nossos espaços autônomos nesse processo. Mesmo quando misturada com métodos não-violentos mais agressivos, uma estratégia baseada na construção de alternativas que se constrange aos limites do pacifismo nunca será o suficientemente forte para resistir à zelosa violência que as sociedades capitalistas empregam quando consquistam e absorvem sociedades autônomas. Finalmente temos a aproximação estratégica não-violenta de desobediência generalizada. Ela tende a ser a mais permissiva das estratégias não-violentas, muitas vezes concordando com a destruição da propiedade e a resistência física simbólica, embora as “disciplinadas” campanhas não-violentas e a desobedência também se encaixem dentro desta tipologia. O filme recente A Quarta Guerra Mundial[21] situa-se na margem mais militante deste conceito de revolução, destacando as lutas de resistência — desde a Palestina até Chiapas-, enquanto oculta a existência de significativos segmentos de ditos movimentos que estão implicados na luta armada, provavelmente pensando no conforto da audiência estadounidense. As estratégias de desobediência tentam mudar o sistema atavés de greves, bloqueios, boicotes e outras formas de desobediência e rejeição. Mesmo se muitas destas táticas são extremamente úteis na hora de construir uma prática revolucionária real, a estratégia em si apresenta grandes lacunas ideológicas.

Este tipo de estratégia apenas é capaz de criar pressão e aumentar a influência; porém não pode jamais ter sucesso na hora de destruir o poder ou de entregar o controle da sociedade às pessoas. Quando uma população envolve-se na desobediência generalizada, os mais poderosos afrontam uma crise. A ilusão da democracia não está funcionando: isto é uma crise. As estradas têm sido bloqueadas, e os negócios têm sido arrastados até quebrar: isto é uma crise. Mas os poderosos ainda controlam um grande excedente, não estão em perigo de passar fome por causa de uma greve. Controlam todo o capital do país, ainda quando uma parte desse capital tenha sido inutilizado mediante os bloqueios e as ocupações. Mais importante ainda, eles têm o controle do exército e da polícia (as elites têm aprendido muito mais sobre como conservar a lealdade do exército depois da Revolução Russa, e nas últimas décadas as únicas deserções militares significativas têm ocorrido quando o exército confronta-se contra uma resistência violenta e o governo parece estar agonizando; os policiais por sua parte, sempre têm sido lacaios fiéis). Atrás das portas fechadas encontramos líderes de negócios, líderes do governo, e líderes militares. Talvez não tenham convidado certos membros vergonhosos da elite; talvez múltiplas facções estão tramando intrigas para sair desta crise se convertendo em figuras visíveis. Podem usar o exército para quebar com qualquer barricada não-violenta, retomar qualquier fábrica ocupada, e confiscar o produto do seu trabalho, se os rebeldes tentam desenvolver uma economia autônoma.

Em última instância, o poder pode prender, torturar e matar todos os organizadores; conduzir o movimento à desgraça; e restaurar a ordem nas ruas. Uma população rebelde que faz protestos ou lança pedras não pode confrontar um exército que tem carta branca para o uso de todas as armas do seu arsenal. Mas atrás das portas fechadas, os líderes dos países concordam que estes métodos não são os preferíveis, são o último recurso. Utilizá-los destruiria a ilusão da democracia por anos, afastando os investidores e causando danos à economia. Então eles ganham deixando os rebeldes declararem a vitória: sob pressão dos líderes empresariais e dos líderes militares, o presidente e uns poucos políticos escolhidos se demitirão (ou melhor ainda fugirão voando num helicóptero); a mídia corporativa chamará de revolução e começará a fazer tocar as trombetas pelas credenciais do novo presindente (que foi selecionado pelos líderes empresariais e do exército); e os ativistas do movimento popular, se se constragerem a si mesmos à não-violência ao invés de de se prepararem para a inevitável escalada de táticas, serão derrocados justo quando estiverem finalmente às portas da verdadeira revolução.

No transcurso da história, este tipo de estratégia não tem tido sucesso na hora de provocar que a classe formada pelos proprietários, gerentes e mandatários desertassem se tornassem desobedientes, porque seus interesses são fundamentalmente opostos aos interesses daqueles que participam da desobediência. O que a estratégia de desobediência tem conseguido fazer, em repetidas ocasiões, é derrubar certos regimes de governos particulares, apesar de que estes sempre são substituídos por regimes constituídos pela elite (às vezes por reformistas moderados e otras vezes pelo próprio líder do movimento opositor). Isto aconteceu na Índia na época da descolonização e na Argentina em 2001; com Marcos nas Filipinas e com Milosevic na Sérvia (este último exemplo, junto com o de outras “revoluções” similares na Geórgia, Ucrânia e o Líbano, demostram a inefitividade da desobediência geralizada para realmente distribuir poder social entre as pessoas; todos estes golpes populares foram efetivamente orquestrados e financiados pelos Estados Unidos para instalar um mercado mais amistosos e políticos pro-EUA[22]). Não é nem sequer apropriado dizer que os antigos regimes foram derrubados pela força. Frente à crescente desobediência e a ameaça de uma revolução real, eles escolhem entregar o poder a novos regimes, que confiam que irão honrar os esquemas básicos do capitalismo e do Estado. Quando eles não têm a opção de transferir o poder, tiram suas luvas e tentam embrutecer e dominar o movimento, que não pode defender a si mesmo e sobreviver sem priorizar táticas. Isso foi o que aconteceu com o movimento operário anti-autoritário dos Estados Unidos nos anos 1920.

As estratégias de desobediência generalizada tentam mudar o sistema, e inclusive nesta tentativa são menos efetivas que as estratégias militantes. No mesmo contexto que é requerido para a desobediência generalizada — um movimento de rebelião amplo e bem organizado — se não restringirmos o movimento à não-violência, mas sim apoiarmos uma diverdiade de táticas, seremos tremendamente mais efetivo. Em termos de derrubar o sistema, não pode haver comparação entre bloquear uma ponte ou uma via de trem pacificamente e fazê-los voar pelos ares. Esta última causa uma obstrução mais prolongada e duradora, é mais difícil de esclarecer, precisa de uma resposta mais dramática das autoridades, provoca mais dano à moral e à imagem pública das autoridades, e permite aos perpetradores fugir e lutar outro dia. Explodir uma via de trem (ou usar uma forma menos dramática e menos ameaçadora de sabotagem, no caso da situação social indique que assim seja mais efetivo) assustará e chateará as pessoas que se opuserem ao movimento de libertação, muito mais do que pode fazer um bloqueio. Mas também fará que o movimento seja tomado mais a sério e que seja dispensado como um simples inconveniente. É claro que aqueles que praticam uma diversidade de táticas têm a opção de fazer um bloqueio pacífico ou um ato de sabotagem, dependendo de como avaliem que será a resposta pública).

Embora a estratégia de desobediência generalizada possa ser útil para os trabalhadores, pode não ter relevância nenhuma para algumas populações já marginalizadas e consideradas sobras, como é o fato de muitas populações indígenas arrasadas pela expulsão ou o extermínio; porque sua participação não é vital para o funcionamento do Estado agressor. Os Aché, no Amazonas, não pagam imposto nenhum para o governo, e não trabalham em nenhum emprego que possam abandonar. A campanha genocida não depende de sua cooperação ou não cooperação. Aqueles a quem as autoridades gostariam de ver simplesmente abandonadas à sua sorte ou mortas, não podem ganhar nada com a desobediência.

Como temos visto, os tipos mais importantes de estratégias não-violentas terminam, a longo prazo, num insuperável beco sem saída. As estratégias de tipo moral não compreendem o jeito que o Estado mantém o controle; e assim, permanecem cegos às barreiras impostas pelos meios de comunicação e as instituições culturais, não oferecendo qualquer contrapartida à capacidade de minorias armadas controlar maiorias desarmadas. A abordagem de lobby gasta recursos tentando pressionar o governo para que atue contra seus próprios interesses. As estratégias centradas em construir alternativas ignoram a habilidade do Estado em reprimir projetos radicais e o talento do capitalismo em absorver e corromper as sociedades autônomas. As estratégias de desobediência generalizada abrem a porta para a revolução, mas negam aos movimentos populares as táticas necessárias para expropriar o controle direto da economia, redistribuir a saúde, e destruir o aparelho repressivo do Estado.

A visão de longo prazo que evidencia a ineficácia dessas estratégias não-violentas também faz com que as chances de qualquer estratégia militarizada pareçam sombrias, vendo como a maioria das comunidades anarquistas nos EUA estão provavelmente despreparadas para defenderem-se do Estado. Mas é em nossas organizações cotidianas que ativistas anti-autoritários podem superar estrategicamente a passividade e promover a militância, e assim mudar as perspectivas das lutas futuras. As estratégias não-violentas evitam esse trabalho. Elas também nos deixam em desvantagem quando interagimos com a polícia e com os meios de comunicação, dois exemplos que mereceriam maiores análises.

A não-violência acaba por jogar dois jogos, vigilância de dentro das comunidades e estratégias de controle de multidões. As táticas do pacifismo, como muitas das táticas do moderno controle policial das multidões, são desenhadas para desempoderar situações potencialmente insurrecionais. No seu recente livro, que detalha a história do desenvolvimento das modernas forças policias dos Estados Unidos, Our Enemies in Blue, Kristian Williams documenta como as crises dos anos 60 e 70 demonstraram à polícia que seus métodos de lidar com insurreições populares (tais como protestos e distúrbios urbanos) apenas encorajavam mais resistência e mais violência por parte dos resistentes.[23]. A resistência era tão empoderadora que a polícia perdeu o controle, e o governo teve que enviar o exército (corroendo ainda mais a ilusão da democracia e abrindo a possibilidade de uma rebelião real). Nos anos seguintes, a polícia desenvolveu estratégias de vigilância comunitária — para melhorar sua imagem e controlar organizações comunitárias potencialmente subversivas — e táticas de controle de multidões enfatizando a pacificação social. As descrições dessas táticas são um reflexo exato das recomendações dos pacifistas para conduzir os protestos. A polícia permite formas menores de desobediência enquanto mantém uma certa comunicação com os líderes dos protestos, os quais eles pressionam de antemão para fazer com que o protesto policie a si mesmo. Coisas como a existência dos “Oficiais da Paz”, as ligações policiais, e as permissões para marchas, são todos aspectos da estratégia policial, e que me levam a perguntar se os pacifistas chegaram a essas ideias sozinhos, como uma função da sua mentalidade implicitamente estatista, ou se eles ficaram tão entusiasmados com sua ideia de “amar o inimigo” que acabaram engolindo todas suas sugestões de como conduzir uma resistência. De qualquer modo, enquanto continuarmos tolerando o comando da não-violência nos protestos, estaremos exatamente no lugar onde a polícia quer que estejamos. Mas se nos negamos a diminuir a intensidade de nossas lutas e a cooperar com a polícia, poderemos organizar protestos perturbantes quando eles forem necessários e lutar pelos interesses de nossa comunidade ou causa, sem termos compromisso com o poder.

A não-violêcia também leva a estratégias midiáticas ruins. Os códigos de conduta não-violentos para protestos contradiz a regra número um das relações midiáticas: “manter-se sempre na mensagem”. Os ativistas não-violentos não precisam empregar códigos da não-violência para continuar se comportamdo de modo pacifista. Eles o fazem para reforçar uma conformidade ideológica e para assegurar sua liderança sobre a multidão. Também o fazem como um seguro-violência, porque se em algum “elemento incontrolável” resolve atuar violentamente durante um protesto, eles podem proteger suas organizações de serem demonizadas pelos meios de comunicação. Eles rapidamente sacam o código não-violento como prova de que não foram responsáveis pela violência surgida, e assim ajoelham-se diante da ordem reinante. Neste momento, eles já perderam a guerra midiática[24]. A troca típica entre eles é mais ou menos assim:

Jornalista: O que você tem a dizer sobre as janelas quebradas no protesto de hoje?Ativista: A nossa organização possui uma plataforma de ação bem divulgada de comportamento não-violento. Nós condenamos as ações de extremistas que estão estragando esse protesto, especialmente em relação às pessoas de boas intenções, que estão preocupadas em salvar as florestas/parar a guerra/parar esses despejos.

Os ativistas raramente conseguem mais do que duas linhas de citação ou dez segundos de um clipe na mídia corporativa. Os ativistas não-violentos exemplificados nesse sketch gastam mal seus poucos segundos de fama ao ficar na defensiva, se justificando; fazendo da sua reivindicação algo secundário em relação às preocupações da elite (no caso a destruição da propriedade por parte dos ativistas); admitindo ainda sua debilidade, sua fraqueza e desorganização diante do público (por assumir a responsabilidade por outros manifestantes simultaneamente enquanto lamentam o fracasso em controlá-los); e, não menos importante, dividindo o movimento e traindo seus aliados publicamente. Aquela troca deveria ser assim:

Jornalista: O que você tem a dizer sobre as janelas quebradas no protesto de hoje?Ativista: Nada comparado com a violência dos desmatamentos/das guerras/desses despejos.

Se pressionados ou questionados pelas forças judiciais, os ativistas podem insistir de que não são pessoalmente responsáveis pelo dano à propriedade e que não podem responder pelas motivações daqueles que o foram. (Mas em qualquer caso, é melhor não falar com os membros dos meios de comunicação comerciais, embora sejam seres humanos, porque raras vezes se comportam como tais. Os ativistas deveriam responder só declarações concisas que taticamente se refiram ao tema; senão, os editores terão muito prazer em procurar citações estúpidas, em censurar a informação ou de fazerem citações desafiadoras) Se os ativistas obtêm sucesso em manter o foco na questão em discussão, eles garantem que seus nomes fiquem limpos enquanto reconduzem de novo o tema para onde lhes resulta mais interessante colocar-lo (com táticas tais como escrever cartas para o editor ou protestar contra as acusações dos meios de comunicação). Mas se os ativistas estão mais preocupados em limpar seus nomes do que em aprofundar o assunto pelo qual lutam, eles já começam perdendo.

A primeira vista, uma concepção militante de revolução parece mais impraticável do que uma concepção não-violenta, mas isso acontece porque ela é realista. As pessoas devem compreender que o capitalismo, o Estado, a supremacia branca e o patriarcado, constituem, somados, uma guerra aberta contra a população mundial. Fazendo da revolução apenas uma intensificação dessa guerra. Não podemos nos libertar e criar os mundos nos quais queremos viver se pensamos na mudança social em termos de “acender uma vela na escuridão”, “ganhar as mentes e os corações”, “falar claramente com o poder”, “capturar a atenção das pessoas”, ou qualquer outro desfile passivo. Milhões de pessoas morrem a cada dia neste planeta por não terem água limpa para beber, já que os governos e as empresas que usurparam o controle dos recursos ainda não acharam um jeito de aproveitar as vidas dessas pessoas, eles as deixam morrer. Milhões de pessoas morrem a cada ano porque umas poucas empresas com seus governos aliados não querem permitir a produção de remédios genéricos contra a AIDS e outras doenças. Você acha que as instituções e elitistas que detêm o poder da vida ou da morte de milhões de pessoas se importam com nossos protestos? Eles declararam guerra contra nós, e é necessário lhes revidar o golpe. Não é por estarmos com raiva (embora tenhamos motivos suficientes para estarmos), nem por querermos vingança, e definitivamente, não é porque atuamos por impulso — senão por que pesamos a possibilidade de viver em liberdade contra a certeza da vergonha de viver sob qualquer forma de dominação a qual enfrentarmos no canto do mundo em que estivermos; é porque vemos que algumas pessoas já estão lutando, às vezes sozinhas, por sua libertação, e que elas têm o direito de fazê-lo e que devemos apoiá-las; e também porque compreendemos que as superlotadas cadeias que enterram nosso mundo foram tão bem construídas que o único modo de nos libertar é combater e destruir essas cadeias, derrotando os carcerários do jeito que for preciso.

Se dar conta de que isso tudo é uma guerra pode nos ajudar a decidir quais estratégias devemos elaborar para o caminho necessário. Principalmente para aqueles de nós moradores da América do Norte, da Europa, e de qualquer outra parte do mundo na qual exista a ilusão da democracia. O governo finge que nunca nos mataria se desafiássemos sua autoridade, mas isso é só uma ilusão. No seu discurso anual dirigido ao Congresso, no dia 3 de Dezembro de 1901, o presidente Theodore Roosevelt, falando do inimigo do dia, declarou: “Deveríamos fazer a guerra com implacável eficiência não só contra os anarquistas, senão contra todos aqueles simpatizantes ativos e passivos da anarquia”[25]. Cem anos depois, em setembro de 2001, o presidente George W. Bush anunciou: “Ou (você) está conosco, ou está com os terroristas”[26].

Além de mostrar quão pouco nossos governos têm mudado em um século, essa citação expõe uma interessante questão. É claro que podemos negar a exigência de Bush de que se não nos juntamos com Bin Laden temos que declarar lealdade à Casa Branca. Mas se insistimos na deslealdade, então, apesar de nossas filiações pessoais, é evidente que Bush nos julga como terroristas, e o Departamento de Justiça manifestou que nos perseguirá como tais (na sua campanha contra os ativistas ambientalistas radicais os etiquetou como “eco-terroristas”[27]; na espionagem da dissidência por parte da “Joint Terrorism Task Force”; e na perseguição, repressão e deportação dos imigrantes e muçulmanos, que têm sido a principal atividade nacional de “segurança” do governo após o 11 de Setembro). Poderíamos reconhecer orgulhosamente que “terrorista” tem sido durante décadas a etiqueta que o governo escolheu para as pessoas que lutam por liberdade, e certamente, essa honra nos é outorgada prematuramente, basta vermos o estado de nosso movimento. Mas a resistência pacífica nos Estado Unidos não se sente confortável no papel de combatente em busca de liberdade. Ao invés de reconhecer a guerra que já existe, acabamos indo para o lado mais “seguro” da dicotomia colocada por Bush, tanto faz se a admitimos ou não, e a não-violência tem sido a nossa desculpa.

O General Frank Kitson, um influente militar britânico, policial e teórico do controle social, cujas estratégias têm sido disseminadas e adotadas por agentes do Estado e por agências da polícia dos Estados Unidos, teoriza que os distúrbios sociais acontecem em três fases: preparação, não-violência e insurgência [28]. A polícia compreendeu isso rapidamente, e faz o possível para manter os dissidentes e as massas descontentes nas duas primeiras fases. O problema é que muitos desses dissidentes não entenderam isso. Ainda não compreenderam o que é necessário para redistribuir o poder na nossa sociedade, e se protegem, assim como seus aliados, para não percorrerem o caminho completo das fases.

É evidente que o Estado teme mais os grupos militantes que os não-violentos; para mim isso enfatiza o fato de que os grupos militantes são mais efetivos. O Estado compreende que deve reagir de jeito mais forte e enérgico para neutralizar os movimentos revolucionários militantes. Eu escutei várias vezes alguns ativistas não-violentos jogar com esses fatos para argumentar que as tentativas revolucionárias não-violentas são mais eficazes, já que as tentativas militantes serão selvagemente reprimidas (e em outros capítulos eu mostrei que esses ativistas estão mais preocupados com sua própria segurança). Isso é certo, o caminho para a revolução vislumbrado pelos ativistas militantes é muito mais difícil e perigoso do que aquele vislumbrado pelos pacifistas, mas também tem a vantagem de ser mais realista, ao contrário da fantasia pacifista. Mas esse malabarismo lógico vale a pena examinar.

Os pacifistas reivindicam que são mais efetivos porque é mais provável que sobrevivam à repressão. O raciocínio é que ativistas que atuam de forma mais contundente fornecem argumentos e a justificativa necessária para o Estado matá-los (a justificativa é uma autodefesa contra um inimigo violento), ao passo que os Estados são incapazes de usar a violência contra os pacifistas porque não existiria “nehuma justificativa”. A ingênua hipótese na qual esse raciocínio está baseado é a de que os governos são regulados pela opinião pública, e não vice-e-versa. Deixando para trás a sofisticação não-violenta, podemos facilmente estabelecer que o fator que determina a repressão governamental é uma medida popular contra a opinião pública. Esse fator é a legitimação popular, ou a falta dela, a qual o movimento de resistência desfruta — não tem nada a var com a violência ou a não-violência. Se as pessoas não veem determinado movimento de resistência como legítimo ou importante, se elas balançam suas bandeiras com todos os outros, elas irão comemorar até mesmo quando o governo realizar massacres. Mas se as pessoas simpatizam com o movimento de resistência, então, a repressão do governo fomentará ainda mais resistência. A matança de um grupo pacífico de Cheyennes e Araphao em Sant Creek apenas levou os cidadãos brancos do país aos aplausos; foi similar a resposta nacional à repressão de inofensivos “comunistas” nos anos 50. Mas em tempos de grande popularidade, as tentativas britânicas de reprimir o Exército Republicano Irlandês (IRA) apenas resultaram em maior apoio para o IRA e mais vergonha para os britânicos, tanto dentro da Irlanda como internacionalmente. Na década passada, as tentativas dos sérvios de esmagar o Exército de Libertação de Kosovo tiveram o mesmo efeito.

O governo é capaz de reprimir tanto grupos não-violentos como militantes sem provocar uma reação violenta contanto que possua controle sobre o terreno ideológico. Os grupos não-violentos podem operar com menor independência cultural e menor apoio popular porque tendem a mirar baixo e a oferecer pouca ameaça; ao contrário, um grupo militante, por sua simples existência, é um desafio direto ao monopólio estatal da força. Os grupos militantes compreendem que precisam superar o Estado, e mesmo que não ajudem a criar uma cultura de resistência ampla, permanecerão isolados. Os pacifistas, por outro lado, podem renegar o confronto com o poder do Estado e fingem estar voltados para um proceso que transformará magicamente o Estado através do “poder do amor”, ou de sua “testemunha não-violenta”, ou pela difusão de imagens comovedoras de fantoches de papelão através da midia. A prevalência ou a escassez do pacifismo é um bom barômetro para medir a fraqueza do movimento. Um apoio popular forte permite a um movimento radical sobreviver à repressão; se um movimento construiu um bom apoio popular na luta contra o Estado, estará muito mais próximo da vitória.

O Estado decide reprimir ativistas e movimentos sociais quando percebe as metas dissidentes como ameaçadoras e atingíveis.Se a meta é minar ou destruir o poder estatal, e os agentes do Estado acreditam que há chance dessa meta ser atingida, eles irão reprimir ou destruir o movimento, independente das táticas advogadas. A violência encoraja a repressão? Não necessariamente. Vamos considerar alguns estudos de caso e comparar a repressão dos Wobblies com a dos imigrantes italianos anarquistas ou dos mineiros apalachianos. Os três casos aconteceram no mesmo período, durante a Primeira Guerra Mundial, nos anos 20, nos Estados Unidos.

O Industrial Workers of the World (IWW) — cujos membros são conhecido como Wobblies — foi um sindicato anarquista que buscava a abolição do trabalho assalariado. No seu auge, em 1923, o IWW teve cerca de meio milhão de membros e simpatizantes ativos. De início, o sindicato foi militante: alguns dos líderes do IWW encorajavam a sabotagem. Todavia, o sindicato nunca rejeitou plenamente a não-violência e suas táticas principais foram a educação, os protestos, os debates e a desobediência civil. A organização visível e sua estrutura centralizada tornaram-no um alvo fácil para a repressão governamental. Em resposta a pressão do Estado, a organização nem ao menos adotou uma posição de oposição à Primeira Guerra Mundial. “Por fim, a liderança dediciu explicitamente não encorajar seus membros a transgredir a lei [mediante oposição ao recrutamento]. Contudo ,a forma com a qual eles foram subsequentemente tratados pelos oficiais de estado mostrou que eles poderiam muito bem ter feito”[29]. Os Wobblies também abriram espaço para as demandas de passividade do Estado mediante a supressão de um panfleto com o discurso de Elizabeth Gurley Flynn, de 1913, no qual encorajava a sabotagem. O IWW retirou de circulação livros e panfletos similares e “renunciaram oficialmente ao uso da sabotagem por qualquer de seus membros”[30]. Com certeza, nenhuma dessas ações salvou o sindicato da repressão, porque o governo já o tinha identicado como uma ameaça a ser neutralizada. O objetivo da IWW (abolição do trabalho assalariado através da redução gradual das horas de trabalho) era uma ameaça para a ordem capitalista, e o tamanho do sindicato lhe deu o poder para fazer circular essas perigosas ideias e realizar significativas greves. Mil Wobblies, em Chicago, foram levados à julgamento em 1918, junto a ativistas do IWW de Sacramento e de Wichita; o governo acusou-lhes de incitação a violência e sindicalismo criminoso. Todos eles foram julgados culpados. Depois do aprisionamento e outros tipos de repressão (incluindo o linchamento de ativistas do IWW em algumas cidades), “a força dinâmica do sindicato tinha sido perdida, nunca recuperaram o controle do movimento sindicalista norteamericano”[31]. Os Wobblies abriram-se ao poder estatal e pacificaram-se, renunciando as práticas violentas; isso foi um passo no caminho de sua repressão. Foram presos, golpeados e linchados. O governo reprimiu-lhes por seu radicalismo e pela popularidade de suas ideias. Renunciando à violência, descartaram a possibilidade de defender sua perspectiva de mundo.

Os imigrantes anarquistas italianos que viveram em New England sobreviveram à repressão governamental no mínimo tanto quanto os Wobblies, embora estivessem em menor número e suas táticas fossem muito mais espetaculares — eles bombardearam as casas e escritórios de diversos oficiais do governo, e quase assassinaram o procurador geral dos EUA A. Mitchel Palmer[32]. Os maiores militantes dos anarquistas italianos foram os Galleanistas[33], que se lançaram à guerra de classes. Diferente dos Wobblies, eles verbal e abertamente se organizaram contra a Primeira Guerra Mundial, criando protestos, discussões e publicando alguns dos textos mais revolucionárias e anti-guerras já visto nos jornais, como no Cronaca Sovversiva (que o Departamento de Justiça declarou “O mais perigoso jornal publicado no país”[34]). De fato, muitos deles foram assassinados pela polícia em protestos anti-guerra. Os galleanistas apoiaram fortemente a organização trabalhadora das fábricas de New England, e foram apoiadores chave nas principais greves. Eles também conseguiram tempo para se organizar contra a crescente onda fascista nos EUA. Porém a maior marca que os galleanistas deixaram foi sua recusa em aceitar a repressão do governo.

Os anarquistas italianos realizaram muitos atentados em New England, em cidades como Milwaukee, Nova York, Pittsburgh, Filadelfia, Washington, e em outros lugares, em geral em resposta ao aprisionamento ou o assassinato de camaradas pelas forças do Estado. Alguns desses ataques foram campanhas coordenadas, que aconteceram em bombardeios múltiplos e simultâneos. O maior foi o atentado de 1920, em Wall Street, em resposta tramóia montada para Sacco e Vanzetti (que não estavam envolvidos no roubo pelo qual foram executados, mas que provavelmente tiveram um papel importante em alguns dos atentados dos Galleanistas). No atentado morreram 33 pessoas, causaram um prejuízo de 2 milhões de dólares, e foi destruída, entre outras coisas, a House of Morgan, o principal prédio financeiro estado unidense. A polícia federal norteamericana organizou uma investigação e perseguição massivas, mas nunca capturaram ninguém. Paul Avrich defende que o atentado foi trabalho de um só galleanista, Mario Buda, que fugiu para a Itália e continuou seu trabalho até que foi preso pelo regime de Mussolini[35].

O governo se esforçou para reprimir os anarquistas italianos, e obteve um sucesso apenas parcial. As forças governamentais, através de ações policiais e execuções judiciais, aprisionaram mais de doze ativistas. Porém, diferente dos Wobblies, os galleanistas evitaram serem presos em massa. Isso foi, em parte, graças a suas formas de organização segura, consciente e descentralizada, influenciada pelo conceito italiano de revolução militante. É importante salientar que os galleanistas estiveram especialmente em risco de repressão governamental porque, ao contrário dos Wobblies, eles podiam ser alvo da xenofobia do homem branco, anglo-saxão e protestante e ameaçados de deportação. (De fato, cerca de oitenta deles foram deportados. Ainda asim, os outros foram capazes de permanecer em atividade.[36]). A intransigente resposta dos galleanistas à repressão estatal teve, ao menos, alguns resultados relevantes para desencorajar a repressão (além de provocar, no governo e nos donos das fábricas, o medo de fazer algo contra seus trabalhadores que os levasse a unir-se aos militantes anarquistas, e somarem-se aos atentados). Através de ameaças com cartas bomba, eles fizeram com que o detetive do FBI que havia trabalhado para localizar e deter seus muitos camaradas em 1918, fugisse e deixasse o FBI inteiramente em 1919 [37]. Ao contrário disso, as únicas consequências que os agentes do governo responsáveis pela repressão dos Wobblies tiveram que enfrentar foram suas promoções a cargos superiores.

Entre 1919 e 1920, o alto escalão de caça à Ameaça Vermelha prenderam os anarquistas italianos, embora eles tenham permanecido ativos e firmes, sem serem dobrados tão rápido quanto os Wobblies. Em outubro de 1920, Cronaca Sovversiva, o jornal que serviu como um centro para muitos dos Galleanistas, foi suprimido pelas autoridades e o foco das atividades dos migrantes italianos anarquistas voltou a ser a Itália, para onde muitos deles fugiram ou foram deportados. O final de seu movimento nos Estados Unidos não foi o final total de seu movimento como um todo, e durante vários anos, esses mesmos anarquistas foram oponentes chave de Mussolini, que, assim como seus colegas americanos, os temia e priorizou sua repressão. (De fato, o novo diretor do FBI, J. Edgar Hoover, supriu os fascistas com uma quantidade enorme de informações para o propósito específico de destruir os anarquistas italianos[38]). E alguns de seus exilados tomaram parte na Guerra civil espanhola em 1936. Embora o anarquismo italiano nos Estados Unidos, “nunca tenha se recuperado” após 1920, “os anarquistas jamais sumiram de cena”[39]. Com um foco internacional, organizaram uma oposição aos emergentes ditadores fascistas e comunistas (estiveram “na vanguarda da luta antifascista” nos núcleos italianos dos Estados Unidos[40]), e criaram também uma campanha de apoio a Sacco e Vanzetti em escala mundial.

Longe de serem figuras mundialmente alienantes, Sacco e Vanzetti ganharam apoio de suas comunidades — italianos e WASPs (Branco, Anglo-Saxão e Protestante) — e de algumas figuras públicas, tanto nos EUA como na Europa; isso apesar de serem encarcerados e de continuarem chamando a revolução e incitando campanhas contra as autoridades. Seus apoiadores, do lado de fora, não os decepcionaram. Desde 1926 até 1932, os anarquistas realizaram vários atentados, tendo como alvo o juiz, o governante, o executor e aqueles que haviam chamado a polícia para prender os dois — ninguém jamais foi pego. Os anarquistas italianos continuaram a agitar e difundir suas ideias — o sucessor do Cronaca Sovversiva, L´Adunata dei Refrattari, foi publicado por mais quarenta anos, até a década dos anos 60.

A Guerra de Mineiros de 1921, em West Virginia, oferece outro exemplo de respostas governamentais às táticas militantes. Quando os proprietários das minas reprimiram os esforços dos mineiros para formar sindicatos (atacando membros dos sindicatos e trazendo fura-greves) os rebeldes apalachianos responderam contundentemente. Abriram fogo contra os fura-greves e asassinaram vários capangas das empresas de carvão enviados para reprimir-lhes. Desenvolveu-se um conflito de guerrilha que logo progrediu para uma verdadeira guerra. Em diversas ocasiões, a polícia e os capangas da empresa abriram fogo contra os acampamentos dos mineiros, atacando mulheres e crianças. No massacre mais famoso, eles mataram a tiros Sid Hartfield, que, em qualidade de xerife, havia lutado contra a repressão realizada pelos capangas da empresa. Milhares de mineiros armados formaram um exército e marcharam até Logan, West Virginia, para levar até lá o xerife que tinha sido especialmente ativo na repressão dos mineiros sindicalizados. O exército estadounidense respondeu com milhares de tropas, metralhadoras e até mesmo aviões bombardeiros no que ficou conhecido como a Batalha de Blair Mountain. Depois da batalha os mineiros sindicalizados voltaram atrás. Apesar de terem participado em um dos maiores atos de motim armado do século, apenas poucos deles tiveram sentanças de prisão sérias (muitos dos rebeldes não receberam nenhum castigo). O governo diminuiu um pouco a sua repressão e permitiu a sindicalização dos mineros (seu sindicato ainda existe[41]).

Mais recentemente, os estrategistas da polícia encarregados do movimento anarquista tem notado que “A infiltração policial nas assembléias das facções mais radicais (e com frequência as mais violentas) é particularmente difícil….A própria natureza desconfiada do movimento e suas melhorias nas operações de segurança tornam difícil e demorada a infiltração” [42]. Assim, o pretexto de que os grupos não-violentos têm mais facilidade para sobreviver à repressão não se mantém. Com exceção da tendência dos pacifistas de não propor ameaças que mudem alguma coisa, parece que o oposto é que é verdade.

Considerando alguns pontos em relação a chamada resistência não-violenta à ocupação estadounidense do Iraque, uma das questões mais abordadas nos dias de hoje, o pacifismo concebe a vitória em termos de fazer diminuir ou evitar a violência, de modo que os pacifistas não podem se enfrentar diretamente com a violência. Qualquer resistência real à ocupação militar se traduziria num aumento da violência (uma vez que os ocupantes pretendam terminar com a resistência), antes da libertação e da posibilidade de uma paz real — deve-se piorar antes ficar de melhor. Se a resistência iraquiana é vencida, a situação parecerá mais pacífica, mas na realidade, a violência espetacular da guerra, terá se tornado uma violência ameaçadora, invisível e mundana, digna de uma ocupação que obteve sucesso, e os iraquianos estarão muito mais longe da libertação. Os ativistas não-violentos são propensos a mal interpretar essa paz aparente como uma vitória, assim como fizeram com a retirada do Vietnã, quando declararam vitória ao mesmo tempo em que os bombardeios se intensificaram e o regime dos Estados Unidos continuava a ocupar o Sul de Vietnã.

O que os ativistas não-violentos anti-guerra são incapazes de comprender é que a resistência mais importante, provavelmente a única resistência realmente significativa contra a ocupação do Iraque, é a resistência levada a cabo pelo próprio povo iraquiano. Em geral, os iraquianos têm escolhido a luta armada[43]. Os americanos que condenam esse movimento, enquanto não fazem nenhuma ideia de como se faz para organizar alguma coisa como a resistência iraquiana, estão só ostentando sua ignorância. Os estadounidenses que reivindicam serem anti-guerra usam a não-violência para evitar sua responsabilidade de apoiar a resistência iraquiana. Também ficam “papagaiando” a propaganda dos meios de comunicação comerciais e pensam que todos os grupos iraquianos de resistência são compostos por autoritários e fundamnetalistas patriarcais — quando é uma informação acessível, para qualquer um que tiver interesse, que dentro da resistência iraquiana existe uma grande diversidade de grupos e ideologias. A não-violência, neste caso, é um obstáculo maior do que o medo da repressão governamental na hora de construir relações de solidariedade e de converter aliados críticos para grupos de resistência mais libertadores. Condenando-lhes, assegura-se que os únicos grupos que recebem apoio externo sejam os autoritários, os fundamentalistas e os patriarcais. A abordagem do movimento anti-guerra estadounidense em relação à resistência iraquiana não merece nem sequer ser qualificado como uma péssima estratégia; revela uma total falta de estratégia, e isso é uma coisa que devemos resolver.

As estratégias da não-violência não podem derrotar o Estado; elas tendem a refletir uma falta de compreensão da verdadeira natureza do mesmo. O poder do Estado autoperpetua-se — vencerá os movimentos de libertação com tudo aquilo que esteja a sua disposição, e se as tentativas de derrubar tal estrutura de poder sobrevivem às primeiras ondas repressivas, a elite converterá o conflito em um conflito militar, e já sabemos que as pessoas que empregam a não-violência não poderão nunca vencer um conflito militar. O pacifismo não pode defender-se a si mesmo contra esse intransigente extermínio. Tal como expliquei em um estudo sobre a revolução nas sociedades modernas:

Durante a Segunda Guerra Mundial os alemães não estavam familiarizados com a resistência passiva (quando esta aconteceu); mas hoje em dia, as forças armadas estão muito mais preparadas para fazer frente à não-violência, tanto técnica quanto psicologicamente. Os defensores da não-violência, tal como nos lembra um especialista militar britânico: “inclinam-se a omitir o fato de que seus maiores êxitos foram obtidos contra oponentes cujo código moral era fundamentalmente similar, e cuja crueldade, consequentemente, acabou por ser bastante comedida… O único rastro que pareceu deixar em Hitler, foi a de excitar seu impulso de pisotear aquilo que na sua mente figurava como uma depreciável debilidade…” Se aceitamos a premissa de que os revolucionários negros deste pais — de que vivemos em uma sociedade racista- menos crueldade não se pode esperar…Pode ser interessante tentar descrever o curso de uma insurreição não-violenta… De fato, os experimentos de “role-playing” em “defesa civil” já foram feitos. Num experimento de 31 horas na ilha de Grindstore, na província de Notario, no Canadá, em agosto do ano 1965, 31 “defensores” tiveram que lidar com seis homens “armados”, os quais representavam os Estados Unidos, apoiados pela “ala direita do governo do Canadá, (os quais tinham) ocupado grandes áreas no coração do Canadá…” Ao final do experimento, 13 defensores estavam “mortos”; os participantes “concluíram que o experimento tinha sido uma derrota para a não-violência”[44].

A história da sua prática me conduz à mesma conclusão: a não-violência não pode defender-se a si mesma contra o Estado, e menos ainda pode derrotá-lo. O proclamado poder da não-violência é uma ilusão que outorga aos seus praticantes segurança e capital moral para mascarar sua incapacidade de vencer.

Notas

  1. Me deparei com essa mesma afirmação, no mínimo, com três ativistas não violentos, incluindo jovens ecologistas e ativistas da paz já maiores. Não sei se todos extraíram essa ideia da mesma fonte ou se pensaram-na independentemente, mas essa glorificação da capitalização sem dúvida se origina, logicamente, de sua posição.
  2. Stephen Beder fornece esse extrato do livro de Bernays em seu artigo “Propaganda, Public Relations, and the Not-So-New Dark Age,” LiP, Inverno 2006: 25.
  3. Ibid., 26.
  4. Para mais informações sobre a mídia e a teoria da propaganda, ver Noam Chomsky e Edward Herman, Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media (New York: Pantheon Books, 1998) e Noam Chomsky, Necessary Illusions (Boston: Sonth end Press, 1989). A medida que a insurgência iraquiana crescia, após os meses posteriores a declaração do presidente George Bush de que as principais operações de combate tinham terminado, certo número de funcionários da CIA e capos do Pentágono começaram a desertar, fazendo declarações públicas que podem se dividir em três temas, todos concentrados obviamente ao redor das preocupações pela hegemonia dos EUA: que a invasão foi mal planejada, que está estragando “nossa” imagem no exterior, ou que está dirigindo nossas forças armadas a um ponto de ruptura.
  5. No original em inglês, Catch-22, refere-se a expressão surgida a partir do livro “Catch-22”, de Joseph Heller, para aquelas circunstâncias em que não há vencedores. [N. do T.]
  6. Qualquer um que esteja familiarizado com os meios de comunicação independentes deve saber que existem vários exemplos de meios independentes e rádios piratas fechados pela FCC (assim como a pena federal das rádios independentes nos últimos anos, expandindo assim o que é considerado “pirata”). Para artigos detalhados sobre os casos individuais de repressão governamental das ditas rádios, ver: “Pirate Station Back On San Diego Airwaves”, Infoshop News, January 6, 2006 e de Emily Pyle, “The Died and Life of Free Radio”, The Austin Chronicle, June 22, 2001. Existe também a famosa luta entre KPFA e a Pacífica Rádio, na qual a empresa proprietária foi a que executou a repressão no lugar do Estado.
  7. O Centro de Mídia Independente têm sido o alvo principal dessa repressão. O arquivo central do CMI (www.indymedia.org) provavelmente, contém a documentação mais detalhada sobre a repressão estatal em vários dos domínios do CMI de todo o globo. Nos EUA, Sherman Austin, um webmaster anarquista, responsável pelo êxito do website revolucionário “Raise the Fist” (Erga o Punho), foi aprisionado durante um ano, ilegitimamente acusado de fraudes. Por causa de seus escritos, ele está sob liberdade condicional e está proibido em usar a internet. O governo federal fechou seu website.
  8. Kalle Lasn, em Culture Jam (New York: Quill, 2000), se mostra evidente no seu otimismo temerário no qual assume que a simples disseminação de ideias pode mudar a sociedade.
  9. A diferença dos meios de comunicação socialistas estatais da URSS que gozavam de uma certa credibilidade entre a população, os meios de comunicação privados precisam ser um sistema total de meios de comunicação que gozem da ilusão de estar acima da propaganda política. Se as pessoas em seu lugar de trabalho assistem a um protesto pacífico mas não escutam nada desse protesto pacífico nos jornais, nada aconteceu. As pessoas de fora dos movimentos sociais necessitam um pouco de convicção para acreditar que esse protesto é relevante para eles; é assim que os editores dos jornais podem pensar que estão dando uma resposta às demandas da sua audiência. Mas se as pessoas no seu lugar de trabalho veem distúrbios, ou descobrem que uma bomba explodiu na porta de um banco, e não encontram referências do acontecido nos principais meios de comunicação, elas irão escolher olhar para outro lado e se perguntar o que mais a mídia está ocultando. Uma das razões pela qual um sistema democrático corporativo é mais efetivo do que um modelo totalitário é que o Estado autoritário de partido único tem que dar respostas às emergências, ao invés de ignorá-las.
  10. Os anarquistas russos contemporâneos à revolução de 1905, financiaram suas campanhas de propaganda massiva e seus panfletos de insurreição com expropriações -assaltos armados- dirigidas contra pessoas de sua própria classe social. Paul Avrich, The Rusian Anarchists (Oakland: AK Press, 2005), 44–48, 62. Eles combinaram a agitação com outras táticas militantes, e foi assim que as pessoas pobres conseguiram comprar máquinas de impressão e chegar ao grande público com as ideias anarquistas.
  11. No texto original em inglês, o autor escreve: “‘Plowshares’ anti-war actvists”, fazendo referência à expressão: “to beat swords into plowshares” que significa o movimento de transformar espadas em arados, referindo-se certamente à pacificação. [N. do T.]
  12. Termo alemão que se refere à política ou diplomacia baseada principalmente em considerações práticas, em detrimento de noções ideológicas. O termo é freqüentemente utilizado num sentido pejorativo, indicando tipos de política que são coercitivas, imorais ou maquiavélicas. Fonte:Wikipédia (N.T.).
  13. John Tutino, From Insurrection to Revolution in Mexico: Social Bases of Agrariam Violence, 1750–1940 (Princeton, Priceton University Press, 1986), 6.
  14. Fanon, The Wretched of the Earth, 61.
  15. Faz pouco a SOAW finalmente tem feito alguns avanços ao trabalhar junto com os regimens da América do Sul. Vários governos de tendência esquerdas na América do Sul, como Venezuela, Uruguai e Argentina, pactuaram deixar de enviar soldados para a SOA. Este é outro exemplo de que o pacifismo depende dos governos, que são instituições que os permitem para poder cumprir seus objetivos. Especialmente eles relacionam-se com governos que tem mudado o “Consenso de Washington”, e assim tem menos interesse em que as suas tropas sejam treinadas pelos EUA. Embora estes mesmos governos têm sido ativos na hora de pisotear aos movimentos sociais ou pouplares, com métodos que incluem a supressão dos meios de comunicação desidentes e asassinando aos ativistas. Porque estes governos têm surgido da esquerda autoritária e têm coopatado e fragmentado a rebelião. O resultado final é o mesmo que quando estavam intimamente alinhados com Washington: o controle. Também seria útil lembrar que em alguns destes casos, especialmente na Argentina, os militantes dos movimentos sociais desempenharam um papel importante ao derrotar a alienação prévia existente com a administração dos EUA e permitindo assim a eleição de governos de esquerda.
  16. Beek et al., “Strike One to Educate One Hundred”; 190–193.
  17. David Graeber, Fragments of an Anarchist Antropology ( Chicago: Prickly Paradigm Press, 2004). Os anarquistas, e não por casualidade o acadêmico David Graeber, sugerem que além de criar alternativas na forma de “instituições internacionaies” e “as formas locais e regionais de autogoverno” a gente deve privar aos Estados daquilo que os fundamenta, mediante a destruição “de sua capacidade de inspirar terror” (63). Para conseguir isto a gente deve “fingir que nada tem mudado”, permitir que os representantes oficiais do governo mantenham sua dignidade, inclusive apresentar-nos em seus escritórios algum dia e prencher um formulário, mas para todo o resto, “ignorar-los” (64). Curiosamente ele dá o mesmo exemplo de algumas sociedades de Madagascar, dominadas e exploradas por regimes neocoloniais que evidenciam o “funcionamento” desta pseudoestratégia.
  18. Penny McCall-Howar, “Argentina´s Factories: Now Producig Revolution”, Left Turn, nº7 (Outubro/Novembro 2002): http://www.leftturn.rg/Articles/Viewer.aspx?id=308&type=M; e Michael Albert, “Argentine Self-Management”, Znet, Novembro 3/2005, http://zamg.org/content/showarticle.cfm?sectionID=26&UtenUD=9042.
  19. North America Anarchist Convergence
  20. Não quero fazer um retrato da repressão como algo automático. Algumas vezes as autoridades não dão ouvidos para algo como o centro de uma comunidade anarquista, e com maior frequência, escolhem contê-lo antes de que “se vire contra si”.
  21. Rick Rowley, The Fourth World War (Big Noise, 2003). Ver também a minha crítica de este documentário, “The Fourth World War: A Review”, disponível em www.signalfire.com
  22. Ian Traynor, “US Campaign Behind the Turmoil in Kiev,” Guardian UK, Novembro 26/2004, http://www.guardian.co.uk/international/story/0,,1360080,00.html
  23. Williams, Our Enemies in Blue (N.A.)
  24. “Os conflitos internos são outras da maiores fontes de vulnerabilidade dentro dos movimentos sociais”, Randy Borum e Chuck Tilby, “Anarchist Direct Actions: A Challenge for Law Enforcement”, Studies in Conflict and terrorism, nº28 (2005):219. Os policiais curtiam como loucos, diante daquelas facadas pelas costas
  25. Citado em Fifth Estate, nº370 (Outono do ano 2005): 34.
  26. George W.Bush, “Discurso diante de uma sessão conjunta do Congresso” (Discurso, United States Capitol, Washington, DC, Setembro 2000/2001); http://www.whitehouse.gov/news/releases/2001/09/20010920-8.html
  27. Enquanto escrevia esse livro, mais de uma dúzia de alegados membros da ELF (Frente de Libertação da Terra) e da ALF (Frente de Libertação Animal) foram detidos, depois que o FBI se infiltrara em ambos grupos, e foram sentenciados a cadeia perpétua por provocar simples incêndios, e apesar dessa tremenda pressão, alguns decidiram colaborar com o governo. Seis ativistas do SHAC (Stop Huntington Animal Cruelty) um grupo que conseguiu um exitoso e agressivo boicote contra uma empresa que experimentava com animais, foram acusados em março de 2006 por atos terroristas contra empresas de animais e recentemente encarcerados com penas de vários anos. Rodney Conorado, um ativista veterano, indígena e ecologista, e um dos primeiros presos do ELF, voltou recentemente à prisão, simplesmente por escrever um texto no qual dava força aos ecologistas radicais e no qual incluía-se informação sobre como ele construiu o artefato empregado no ataque pelo qual já havia sido preso anteriormente.
  28. Williams, Our Enemies in Blue, 201.
  29. JH, “World War I: The Chicago Trial”, Fifth Estate, no 370 (Outono de 2005).
  30. JH, “Sabotage”, Fifth Estate, no 370 (Outono de 2005): 22.
  31. JH, “World War I: The Chicago Trial”, 24.
  32. Paul Avrich, Sacco and Vanzetti: The Anarchist Background (Princeton: Pinceton University Press, 1991), 153, 165.
  33. “Os Galleanistas” foram um grupo de anarquistas centrados em torno a um jornal publicado por Luigi Galleani. Embora estivessem influenciados pelo estilo anarquista de Galleani, não o designaram como seu líder de fato, apenas utilizaram seu nome como forma de honrá-lo. A etiqueta “Galleanista” é usada, fundamentalmente, por comodidade.
  34. Paul Avrich, Sacco and Vanzetti: The Anarchist Background, 127.
  35. Ibid., 207.
  36. Ibid., 217.
  37. Ibid., 147.
  38. Ibid., 209.
  39. Ibid., 211
  40. Ibid., 213.
  41. Lon Savage, Thunder in the Mountains: The West Virginia Mine War, 1920–21 (Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1990)
  42. Randy Borum e Chuck Tilby, “Anarchist Direct Actions”, 220.
  43. A partir de janeiro de 2006, 88% dos sunitas no Iraque e 41% dos xiítas admitiam que aprovavam os ataques às forças lideradas pelos EUA. (Editor & Publisher, “Half of Iraquis Back Attachs on US”, reimpresso em Asheville Globar Report, nº 369. (Fevereiro 9–15/2006): http://www.agrnews.org/section=archives&cat_id=13&section_id=10&briefs=true). É possível, considerando o clima de repressão política no Iraque, que as porcentagens sejam ainda maiores, mas muitos dos entrevistados não quiseram revelar seu apoio à insurgência. Em agosto de 2005, 82% dos iraquianos diziam que “opunham-se fortemente” à presença das tropas de invasão, a partir de uma sondagem secreta dos militares britânicos os quais haviam se infiltrado. A mesma porcentagem informou que desejava que as tropas estadounidenses fossem embora de seu país em maio de 2004; pesquisa realizada pela Autoridade Provisional de Coalisão (Thomas E.Ricks, “82% dos iraquianos se opõem à ocupação estadounidense” Washington Post (13 de Maio de 2004)): http://www.globalpolicy.org/ngos/advocacy/protest/iraq/2004/0513poll.htm. Não obstante, esses dias é duro falar sobre a resistência iraquiana, porque a cobertura dos meios de comunicação ocidentais fizeram acreditar que a única coisa que acontece é o bombardeio aos civis. Existe a grande possibilidade de que essas bombas sejam orquestradas pelos invasores, embora a partir de nossa posição estratégica atual, realmente não possamos saber o que está acontecendo na resistência. Basta isso para dizer que a maioria dos grupos de resistência iraquiana adotaram um posicionamento contra o assassinato de civis. Escrevi mais extensamente sobre a possibilidade da participação dos EUA nos assassinatos sectários em “ An Anarchist Critique of the Iraq War”, disponível em www.signalfire.org.
  44. Martin Oppenheimer, The Urban Guerrillla (Chicago: Quadrangle Books, 1969),141–142.

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Marcus Brancaglione

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