A esquerda perplexa

O fim do trabalhismo, socialismo e da democracia liberal I

Marcus Brancaglione
8 min readJan 17, 2019

Muito se criticou a velha esquerda por não descer do pedestal e fazer seu mea culpa. Agora, que caíram então, critica-se muito mais; não só por persistir sem reconhecer seus erros, mas mais ainda por continuar a insistir neles. Críticas perfeitamente válidas e compreensíveis, mas inócuas. Não porque eles sejam completamente cegos, surdos e loucos- embora de fato muitos já não mais vejam nem ouçam nada senão o que querem- mas sim porque mesmo que se pudessem fazê-lo, ou melhor, se assim proceder fosse do seu interesse , ainda sim não conseguiram fazê-lo. Não mais.

Primeiro, porque confessando ou não, já foram condenados, o que por si só tornaria a confissão irrelevante, se, não fosse a confissão um depoimento contra si mesmo, afinal muito do que se pede para confessar não são meros erros, mas crimes. Ou seja, poder, até poderiam, mas não creio que isto seria algo que um advogado aconselharia a seu cliente, não se estivesse defendendo os seus interesses. Principalmente considerando a legislação, jurisprudência e ritos processuais vigentes, onde as acusações tem sempre boa chance de prescrever, ou seja morrer de velhas antes que os velhos morram de velhice ou qualquer outra causa natural, ou não. Uma estratégia que, diga-se de passagem, continua com um futuro promissor para todos. Ao menos, todos que puderem pagar pela fina flor da advocacia brasileira para acessar toda a proteção que a justiça tem a oferecer. E assim continuará, promissora, enquanto a atenção e prioridades da opinião pública estiverem devidamente presas e entretidas (entre outras coisas) em reduzir a maioridade penal para acabar com a bandidagem juvenil, ao invés de acabar com impunidade das ancestrais quadrilhas de velhos patriarcas mafiosos que vão ficando para semente.

E segundo- que é o que realmente importa aonde quero chegar nessa reflexão- mesmo que pudessem ou quisessem simplesmente não seriam capazes de fazê-lo. E como seriam? Como seriam capazes de formular uma autocritica se estão perplexos demais para fazer qualquer analise? que dirá então uma critica, ainda mais tão ampla, a ponto de não só enxergar a si mesmo mas adentrar na própria carne? Não conseguem mais sequer olhar para a realidade sem ficar pasmos e perplexos como produziram qualquer espécie de análise ou crítica? Qualquer asserção para além do “não sei”, “não vi”, “não “concordo”, se todo o pensamento está calcado na pasmação do “não, não posso acreditar”. Como diria o poeta: “Que não é o que não pode ser que/Não é o que não pode/Ser que não é/O que não pode ser que não/É o que não/Pode ser/Que não/É”…

Muito antes da dissonância cognitiva e muito mais do que um mero estado de negação da realidade, a esquerda entrou em curto-circuito num estado permanente e catatônico, um estado constante de perplexidade.

“Estou perplexo!”. Mais do que uma mera expressão usada e abusada, como tanta outras, como uma interjeição de sincero espanto perante todo absurdo, ou mesmo recurso retórico para fugir ou se desembaraçar pessoalmente deles, ou pelo menos tentar, estar perplexo se tornou uma figura de linguagem cuja presença se tornou praticamente obrigatória perante todo revés, inclusive em comunicados oficiais e oficiosos daqueles que portanto não sendo meros espectadores ou torcedores mas os protagonistas, não só enquanto atores, mas autores e autoridades que não tem como se desvencilhar das suas (faltas de) competência e responsabilidades simplesmente declaram-se perplexos.

Definitivamente, não é confissão de culpa que acusadores espera, nem exatamente o minimamente digno reconhecimento do erro que seus defensores esperam. Com certeza, passa longe de ser um mea culpa e mais anida uma autocritica, mas é definitivamente mesmo sem querer o ser, a mais sincera confissão dos erros que poderiam ou melhor ainda são capazes de fazer. Inconsciente, mas absolutamente verdadeira. mesmo quando é usada pelo animal político para tentar se livrar de toda responsabilidade, ou quando é usada pelo relés cidadão para manifestar sem segundas intenções seu estado de espirito, em todas as circunstâncias essa é uma expressão daquelas que sempre revela mais do que o sujeito pensa ou gostaria.

De fato mais do que a corrupção, é a perplexidade, ou melhor, a perplexia o termo que melhor explica e define o estado que se encontra hoje a esquerda no Brasil e no mundo, das bases às lideranças, do ativismo à intelectualidade. Pois muito embora a corrupção esteja também na raiz dessa perplexidade, por mais disseminada que ela esteja em todos os setores e campos, não é um mal tão generalizado, não tanto quanto o é a perplexidade, principalmente se levarmos em conta não só as lideranças mas também as bases e dissidências.

A perplexidade é não só em números de pessoas afligidas, mas em grau muito maior. Pessoas que não estão perplexas só com a corrupção ou com os absurdos retrocessos, incluso os escondidos e contrabando a reboque na agenda de combate a esta, mas simplesmente perplexas com tudo. Mais do que uma perplexidade com o estado geral das coisas, é antes de tudo a perplexidade como um estado de espirito, uma predisposição a ficar e continuar em permanente perplexia; e ainda por cima proclamá-la publicamente sem nenhuma vexação, mas para (e com) desencargo de consciência, e até por vezes certo orgulho, essa condição, praticamente numa apologia a própria perplexidade. Logo, até seria melhor, do ponto de vista de um prognóstico mais favorável, que o diagnóstico fosse meramente corrupção e desonestidade. Mas não, o caso é mais grave, é perplexidade. Ou pior. É perplexia.

Estar perplexo, portanto, longe de ser considerado um mal, é tratado como se fosse uma especie de vacina, ou declaração de princípios, onde o portador ostenta que não faz parte e está imune a toda essa estupidez, insanidade e loucura, quando em verdade a perplexidade é o carimbo cartorial que atesta justamente o contrário, uma declaração de livre e espontânea vontade de imbecilidade; subcategoria: avestruzismo.

Há quem acredite que a perplexidade, o assombro, espanto, seja o principio de todo conhecimento. Isso não seria verdadeiro nem se o sujeito ficasse completamente perplexo com sua absurda perplexidade. Continuaria no mesmo estado, pasmo e embabacado sem saber o que pensar, que dirá como agir. Não só completamente paralisado, incapaz de tomar qualquer decisão, mas em estado inercial, ou como a etimologia das palavras sugere, completamente de joelhos, dobrado, perante uma situação a qual não só não consegue mudar ou escapar mas sequer compreender. Seja porque está aterrorizado ou maravilhado demais com o absurdo, não importa. o que importa é que contente ou descontente, pasmo e embasbacado, sem entender nada nem saber o que fazer, comunicar esse estado fora o desabafo, de útil não tem nada, não explicam nem resolve nada se não for tomada de consciência desse prazer sadomasoquista, orgulhoso e estupido de se estar completamente perplexo, o estado de perplexia.

A perplexidade, não deve portanto ser confundida com a capacidade de detectar e entender o absurdo, nem muito menos com qualquer estado psicológico necessário para que a intelecção assim proceda sua compreensão. A perplexidade não é matéria-prima ao raciocínio, mas o subproduto de um processamento da realidade que não deu certo; é a mensagem de pau no seu sistema operacional. E a perplexia, o estado de total e completa paralisação do seu processamento mental, a tela azul do seu MS Windows- a que por sinal quanto mais MS for mais bugs e backdoor vai ter e mais pau vai dar.

A analogia não é despropositada. Em teoria da informação, o termo perplexidade é medida usada para computar o quanto um modelo probabilístico, isto é, de distribuição de probabilidades, é capaz efetuar uma previsão sobre aquilo que observa. De modo que, quanto menor a perplexidade, maior as chances de prever, ou fazer uma projeção mais correta, leia-se com maior correspondência com a realidade a ser observada, tanto para um quadro futuro a longo prazo, quanto ao futuro ao mais curto prazo possível: o presente.

Rigorosamente, a perplexidade, reflete como impressão ou se preferir sensação quão bem você foi capaz de literalmente processar a realidade, leia-se o caos, com que está lidando. Aliás caos não, entropia, ou mais precisamente entropia cruzada, outra mediada dentro da teoria da informação, está derivada da comparação empírica entre 2 diferentes modelos de probabilidades e seus resultados aferidos: um o modelo esperado (Q), e outro o verdadeiro (P). Trocando em miúdos, uma medida que serve entre outras coisas tais como construir redes neurais de aprendizado profundo, serve para verificar a divergência entre o que se espera e o real, ou exatamente quanto do que se supõe como certo ou que vai dar certo, está distante do que deu errado, ou mais precisamente estava errado.

Novamente a escolha de palavras não é aleatória, divergência e distância de Kullback-leibler é o nome de outra medida dessa entropia, a entropia relativa, ou seja desse outro caos dentro do caos, que é justamente o da discrepância entre as possibilidades/probabilidades esperadas e as de fato aferidas.

Na visão de [Inferência Bayesiana]], DKL (PQ) é uma medida da informação obtida quando alguém revê suas crenças da distribuição de probabilidade inicial Q para distribuição de probabilidade final P. Em outras palavras, é a quantidade de informação perdida quando Q é usado para aproximar P. Em aplicações, P tipicamente representa a distribuição “verdadeira” de dados, observações, ou uma distribuição teórica precisamente calculada, enquanto Q tipicamente representa uma teoria, modelo , descrição ou aproximação de P. Para encontrar uma distribuição Q mais próxima de P, podemos minimizar a divergência de KL e computar uma projeção de informação. — Divergência de Kullback-leibler — Wikipédia, a enciclopédia livre

Logo, se formos ainda mais fundo nessa analogia entre os processamentos de dados das máquinas e o natural, o grau ou a quantidade de perplexidade é sempre inversamente proporcional não só ao aprendizado efetuado ou seu sucesso, mas a capacidade do sistema ou modelo de apreender, isto é, corrigir seus erros e projeções, com bases na avaliação dos resultados esperados versus o resultados obtidos. Neste sentido o grau de perplexidade incluso a total perplexia, é portanto o resultado da incapacidade ou mesmo relutância do sujeito em abandonar os modelos de expectativas frustradas e irrealizadas e fazer as adaptações necessárias a realidade dos dados e observações. Mas isso já é outra coisa outro estado, o da teimosia burra, tema para a próximo reflexão.

Por aqui, ficamos com a recomendação derivada de “P’: observarmos não só qual é não só o grau da nossa perplexidade e perplexia, mas qual a sua verdadeira natureza. Pois, se o “estar perplexo” for uma mera critica ao absurdo alheio, e não a nossa completa incapacidade de lidar não só com a complexidade e entropia tanto da realidade, quanto das nossas contradições e inconsistências em compreendê-la- incluso naquilo que consideramos os males mais absurdos e chocantes, seja como fatos ou relatos-, nosso destino nunca será a liberdade plena de se governar, mas sempre o de sermos governados. E por estatopatas que não só não sabem lidar e usar muito bem com caos e desinformação como armas, como o adoram enquanto o culto e a ordem da destruição. Porque não se iluda, sempre haverão aqueles que “adoram o cheiro de napalm pela manhã”. E ficar perplexo está longe de ser algo que possa se chamar propriamente de reação.

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Marcus Brancaglione

X-Textos: Não recomendado para menores de idade e adultos com baixa tolerância a contrariedade, críticas e decepções de expectativas. Contém spoilers da vida.